Cap. 2 - Adeus

Vamos! Vamos! Gritavam os homens em cima da carroceria do caminhão.
Meu pai repetiu o que se tornaria um ritual nos próximos meses: fez subir minha mãe com Yusef no colo, depois Najma, depois eu e então ele, de um único salto. Diferente do que na fuga, haviam se preparado para a viagem. Pães e água, alguns doces, cobertores, algumas roupas para cada um, fraldas.
Meu pai se certificou de que estávamos seguros dentro do caminhão, e sentou-se também. Tive impressão de que ele estava chorando. Minha mãe com certeza estava.
A despedida dos avós não havia sido fácil. Os adultos lamentavam ter que ir embora, levar-nos tão pequenos para longe, para não se sabe onde, e todos os perigos que podiam acontecer, e os filhos de amigos que não deram mais notícias, e as crianças são tão frágeis, e as pessoas do outro lado não estão aceitando os estrangeiros, e vários outros "es".
Mas meus avós viram como chegamos à sua casa, depois do bombardeio em Allepo. Estávamos empoeirados dos pés à cabeça. Assustados. Fugimos com a roupa do corpo, e os documentos que meu pai "resgatou" dos escombros. Estava claro que não havia mais o que resgatar na cidade, nem móveis, nem roupas, nem os empregos de meus pais, nem sonhos para o futuro. Tudo ficara amontoado entre pedras e estilhaços.
Para meus pais não havia mais o que pensar. Estavam decididos. Havia meses que falavam dessas coisas, aos cochichos pela casa. Nunca fiz pergunta nenhuma. Mas sempre ouvia com atenção. Então, acho que por isso, eu não fiquei surpresos quando me explicaram que não voltaríamos mais para nossa casa e que, por muito tempo, eu não veria meus avós. Eu já sabia.
Mas eu sentia medo. Só não demonstrava.
Ajudei com tudo que pude naquela noite... a arrumar mochilas, a acalmar meus irmãos, e, quando meu pai me ergueu para me colocar na carroceria do caminhão, eu carregava o cobertor com o qual eu deveria usar para cobrir a mim, Najma  e Yusef. Esse era meu serviço na viagem. Meu pai me disse. 
Chegou a hora. Vamos! - foi a última chamada de meu pai.

Assim, de olhos abertos, Daniyal viu os avós à frente da casa ficando para trás. Como choravam! Abraçados acenavam com lenços nas mãos.
A cena voltaria nos sonhos, aqueles nos quais as bombas explodiam perto dos avós, formando um abismo profundo ao redor de uma pequena porção de terra, exatamente onde o casal idoso permanecia em pé, acenando com um lenço branco, indiferente às explosões tão próximas de si.

Logo que começou a viagem, tudo começou a sacudir. Ainda era escuro e não acendemos luzes para não chamar a atenção na estrada. Eu podia sentir o gosto de areia na boca, e ouvir a respiração pesada de minha irmã ao meu lado. Yusef chorou um pouco e depois dormiu. Haviam umas doze pessoas ali, muitas mochilas e três crianças: eu e meus irmãos.
De pronto desempenhei a pequena tarefa que recebi e cobri a mim, Najma e Yusef, o que significou cobrir minha mãe que estava com ele no colo. A sensação do cobertor era agradável e, por um instante, lembrei de estar deitado em minha cama, à noite, quase adormecendo.
Não dormi. Fiquei todo o tempo da viagem quieto, como as demais pessoas. Todos estavam quietos. Acho que por dentro havia muitas palavras, muitas dúvidas. Talvez quisessem conversar, mas as sacudidas da viagem e o barulho do motor do caminhão não deixavam. Ou talvez não soubessem como falar das coisas que estavam pensando. Então, permaneciam em silêncio. Todos.
O caminhão percorreu cerca de 70 km até chegar a Assaz na fronteira com a cidade turca Kilis. De longe avistamos a enorme cerca com suas grades de contenção e o grande número de barracas brancas.
De longe avistamos outro acampamento, do lado de cá da fronteira. Dois acampamentos, mas um parecia mais seguro que o outro. O do lado de lá.
No horizonte, o sol nascia.

Comments

  1. Muito triste deixar tudo para trás. Menos mal que eles ainda estavam todos juntos..pena que ficou os avós para trás.
    No tempo da pecuária do pai eu gostava muito de conversar com um senhor português. Muito sábio e de muitas histórias. Foi então que ele me disse que era muito rico na áfrica, mas que em uma guerra civil teve que sair só com a roupa do corpo.

    ReplyDelete
    Replies
    1. A gente mal consegue imaginar o que é deixar tudo, né?

      Delete
  2. Tristeza, perda, dúvidas transparecem na leitura. Muito bom.

    ReplyDelete
    Replies
    1. Penso que às vezes supervalorizamos nossos problemas do cotidiano e nos esquecemos que estamos seguros...

      Delete
  3. É bastante curioso como nos períodos em que tudo vai bem nossas expectativas são sempre por algo melhor. Grandes dádivas são esquecidas com muita facilidade. Mas, no tempo de dores, detalhes aparentemente banais como a sensação de estar acobertado em uma cama protegida, ganham significado de consolação.

    ReplyDelete
    Replies
    1. Sim!!! A gratidão deveria ser o impulso mais forte que a murmuração, sempre!

      Delete

Post a Comment

Popular posts from this blog

Cap. 1 - O que ficou para trás

Mais que um livro

Cap. 18 - O ponto de vista da fronteira