Cap. 3 - Eu fui visto!
Como
o campo de refugiados já estava lotado, tivemos que entrar numa fila enorme.
Levou dias para entrarmos na Turquia, pois não tínhamos passaporte e
precisávamos novos documentos.
Na
fila recebíamos garrafas de água e, duas vezes por dia, vinham caminhões trazer
comida. O frio fez queimar nossos lábios. Tínhamos que mudar de lado para nos
defender do frio (logo percebemos que era melhor ficar de costas para o vento).
As pessoas dos caminhões também entregavam roupas e mais cobertores. Mesmo
assim, tudo ao nosso redor era muito gelado. Acabamos ficando doentes, mas pelo
menos não sentíamos fome. E as noites passávamos numa das barracas do acampamento
“do lado de cá”.
Não
lembro bem desses dias, apenas que eu meus irmãos menores estávamos ora no
colo, ora no chão, hora entre as pernas de nossos pais.
Pra
mim, os dias que passamos na fila de espera para entrar na Turquia foram até
divertidos. Desde que partimos de Aleppo eu não tinha mais brincado. Acho que
por estar num acampamento, tudo tinha um ar de brincadeira. A começar pela
areia grossa e gelada do chão da fronteira. Observei umas crianças brincando do
outro lado da cerca. Era um grupo de dez ou doze meninos e um caminhão de plástico
com caçamba bem grande. Eles enchiam com as mãos a carroceria do caminhão e
levavam até um buraco onde descarregavam. Era muito engraçado ver todos aqueles
meninos em volta do caminhão de brinquedo. Sempre tinha umas cinco ou seis mãos
empurrando o caminhão, mas não as mesmas, pois todos se revezavam. Um largava e
outro podia entrar na tarefa de empurrar o “veículo” até o perto do buraco.
Riam alto, corriam ao redor do caminhão enquanto ele era deslocado.
De
repente cruzou por eles um menino que me viu! Ele estava numa bicicleta muito
menor do que ele. Uma bicicleta esquisita, bicolor. Guidom verde e esquadro
vermelho ou laranja, acho que vermelho, a pintura já estava muito apagada. Fiquei
tão feliz de ter sido visto que levantei minha mão num aceno. Ele saiu
correndo, pedalando de pé a minúscula bicicleta, já que suas pernas eram
compridas demais para sentar. Por um minuto não entendi o que estava
acontecendo. Será que meu quase amigo ficou chateado de eu ter lhe
cumprimentado? Vai ver que tinham regras em campos de refugiados, regras que
crianças criam nos bairros, verdadeiros códigos que só quando se tem a mesma
idade se compreende. Enquanto eu pensava esse tipo de coisa, surgiu de volta
meu quase amigo acompanhado de outro grupo de crianças. Eram muitos! Os meninos
e meninas começaram a correr na borda da cerca que nos separava. Logo entendi
que devia correr também. Passei horas do primeiro dia correndo com eles.
Lembro-me
exatamente da euforia, meu coração disparado, a sensação do vento frio batendo
no rosto. Eu colocando umas pedras e tocos de árvore no trajeto pra servirem de
obstáculos. Todos pareciam se divertir muito também, ao me verem correr mais
rápido do que todos, mesmo pulando os obstáculos que inventei. Até hoje não sei
por que não conversávamos. Não trocamos palavras. Como se a cerca não fosse de
arame, mas de vidro blindado. Mas também isso não importava, porque era bom
demais estar ali e passar a tarde naquela brincadeira.
Quando
atravessamos a fronteira, meu pai ganhou uns papéis que serviam como novos
documentos para nós. Agora podíamos aguardar um caminhão que nos levaria para
outro campo de refugiados. Mas meus pais não aceitaram essa ajuda. Passamos a
noite numa estação rodoviária. Lá pelo menos tínhamos como nos abrigar do frio.
Meu pai buscou remédios numa farmácia e chá quente numa lanchonete. A sensação
de conforto foi chegando e só me lembro de abrir os olhos novamente quando já estava
clareando o dia.
Essa pureza no coração das crianças essa vontade de viver que nos motiva e nos dá força para continuar lutando. Lembro que em todas as Unidades de tratamento intensivo que passamos com o Erick esse é o grande referencial: As crianças nunca desistem de viver..
ReplyDeleteNeste capítulo vemos a realidade triste de um campo de refugiados. Mas dentro desse triste contexto a alegria e leveza da infância do personagem Danyal se sobrepõe a tudo, através do contato e brincadeiras com outras crianças.
ReplyDeleteVerdade, amigos! As crianças tem a capacidade de viver seus mundos, apesar das circunstâncias. Precisamos disso também!
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