Cap. 8 - Esperança

O pai pagou ao piloto do bote. Armado, o piloto-marujo-soldado desapareceu na orla. Não preocupou-se com o bote que ficou jogado a beira-mar e mais tarde foi retirado pela polícia local.  O casal sírio não sabia se sentia amargura ou gratidão pela travessia no mar. Difícil de decidir, naquele momento. Provavelmente seria gratidão, pois viram a morte na força das ondas. Nas armas dos atravessadores também. Não esperavam por tamanha intimidação. Realmente acreditavam que sua viagem seria mais segura do que aquelas vistas nas notícias. Já não era questão de lamentar ou reclamar. Estava feito. Atravessaram.
Embora estivessem em terra, ela não era firme. Um sentimento de insegurança brotou assim que subiram uma elevação de areia, coberta de vegetação beira-mar. Avistaram a praia dos turistas ao longe, ainda vazia. As pessoas chegariam só mais tarde, para deitarem nas cadeiras de praia, alheias a tudo o que se passara no começo do dia.
À frente outro tipo de pessoas indicavam a direção que deviam seguir. A família tomou o rumo como lhes explicaram com as mãos. O que mais poderiam fazer? Cobertos com os sacos brilhantes, carregavam seus colchonetes e sacolas com roupas.
Logo viram uma praça e começaram a ver outros sírios. Eram muitos. Muitos sírios. Havia crianças também. Labibah estava quieta, com o bebê Yusef no colo. Onde vamos ficar, Kadar? Aqui tem gente demais. Estou tão cansada.
Kadar pediu que esperassem na praça. Assim, Labibah e as crianças sentaram-se no gramado, porque não havia mais bancos livres. A mãe trocou as roupas molhadas das crianças por aquelas que ganharam ainda na areia.
O tempo foi passando. Comeram alimentos que pessoas ofereciam. Havia uma certa organização naquela praça, como voluntários em pequenas mesas, oferecendo informações em inglês, e alguns itens de primeira necessidade. Essas pessoas não podiam resolver a situação de quem quer que fosse, mas transmitiam a sensação de ajuda. Sempre havia alguém com uma caixa, distribuindo água, maçãs e pão.
A mãe disse para as crianças dormirem um pouco. Embora o sol já estivesse alto, reclinaram-se ali mesmo no gramado, sobre os tais colchonetes.
O pequeno Daniyal dormia agitado. Labibah apenas cochilava. Não queria dormir. Sentia que não era seguro, mas o sono lhe pesou nas pálpebras várias vezes ao longo daquele dia. Já não dormira à noite. A quanto tempo estava sem dormir? Sentia-se exausta. De tudo. Desde Aleppo. Era como se o cansaço estivesse vindo sobre ela de uma única vez. Sentia uma angústia, certo nó na garganta. Se ao menos pudesse chorar. Talvez isso lhe aliviasse. Mas as poucas lágrimas que escorreram pelos olhos, logo que as crianças adormeceram, não foram suficientes para aliviar aquela dor forte no estômago. O enjoo lhe atormentava, como se avisasse que aquilo tudo era indigesto.
Quando fechava os olhos,  Labibah  ouvia gritos de pessoas. Ouvia suas vozes e choro. Vez por outra via,  flashes, as expressões de alívio, quando se jogaram na areia da praia. Os sentimentos de desespero daquela madrugada misturavam-se à esperança que ela tinha. A exaustão agora parecia um grande monstro sentado sobre sua esperança. Assim, em sua mente, esforçava-se para afastar aqueles gritos angustiados. Mas não era algo fácil, pois os gritos foram reais. Ouvira de pessoas que morreram afogadas no mar, que lutaram para salvar um filho, uma esposa. Era inevitável para ela imaginar o que teria acontecido de um dos seus não tivesse conseguido se salvar. Talvez tivesse se atirado ao mar, como vira uma mulher fazer, ao perder a filha de seus braços. Assim, no meio dessa batalha de pensamentos, cochilou mais uma vez.
Talvez tenha sonhado ou imaginado, mas a imagem de um barco voltava com frequência dentre as tantas outras que vinha a sua mente. O barco estava repleto de crianças e vinha na direção do bote onde sua família estava. O barco diminuía de tamanho conforme se afastava do bote e chegava, pequeninho, na praia. As crianças desceram todas pra brincar na água. A água não deve estar gelada, mas morna, pensava em seus devaneios. Da elevação de areia, com vegetação costeira, viu surgir vários adultos. Eles correram em direção as crianças e as abraçaram e giraram no ar. Depois sairam em direção à praça, cada qual com sua criança ao lado, unidos pelas mãos.

Comments

  1. Isso me lembrou aquela foto antológica de uma criança refugiada de bruços na areia, morta...

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  2. Por que meus comentários não entram???????

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  3. Travessia angustiante, com momentos trágicos como aquele em que uma mãe se joga atrás da filha que caiu no mar.

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