Cap. 9 - Today! Today!

Quando acordei já era noite. Minha mãe estava sentada ao nosso lado e meus irmãos dormiam. Daniyal, vou ali no banheiro, fique aqui. Logo ela voltou; só agora ela tinha trocado suas roupas molhadas. Então ela permitiu que eu fosse ao banheiro também.
Estava muito frio.
Mãos entregaram sopa quentinha para nós. Tinha um gosto estranho. Não tinha canela, como a sopa que minha mãe fazia em casa. Mas comemos. Até Yuesef. Então, ficamos ali parados, olhando para os prédios, as pessoas, as luzes das luminárias da praça. Por muito tempo.
Uma jovem aproximou-se de nós e ofereceu-se para nos levar até um alojamento. Por causa das crianças, the children, ela disse. Mas minha mãe não aceitou. Ela preferiu esperar por meu pai. Ele poderia ficar desesperado se não nos encontrasse quanto chegasse de volta à praça. E nós estávamos tranquilos. Então, a garota saiu e, depois de um tempo, voltou, com casacos e mais dois cobertores para nós. A noite estava clara e com todas as luzes acesas, não haveria perigo algum, explicou minha mãe para nós. Logo nos acomodamos em nossos colchonetes e dormimos novamente.
Ao amanhecer o dia, tínhamos os lábios e bochechas queimados do frio. Mas havia sol e logo nos sentimos bem. Fomos os quatro para o banheiro. Voltamos para o mesmo lugar. Era notável o quanto minha mãe estava preocupada. Onde estava meu pai? Preferi não perguntar. É claro que ela não sabia.
Não sei ao certo quanto tempo se passou. Mas repetimos a idas ao banheiro e comemos alguns lanches. Finalmente, meu pai chegou. Estava abatido. Não dormiu aquela noite para não perder lugar na fila dos registros. Avisou minha mãe que a fila estava levando até um mês. Não devíamos ficar ali sozinhos, devíamos acompanhá-lo. Os adultos não conversaram muito. Não havia o que dizer. E nem o que fazer, a não seguir para o lugar indicado.
Fomos nos aproximando do fim da “fila”. Na verdade, era uma “rua” com grades de ferro que se encaixavam umas às outras, formando um corredor. Todos ficavam amontoados ali, esperando sua vez de registrarem-se. De repente, assim do nada, ouvimos uma gritaria no começo da fila. Levantamos às pressas e então veio uma onda que empurrou as pessoas contra a cerca de ferro; era uma onda de calor ou de vento, porque não nos molhamos, pensei ingenuamente, quando meu pai uso essa expressão. Meu pai levantou a mim e Najma no seu colo para que não fossemos esmagados contra a cerca. Minha mãe carregava Yusef que acordou com todo aquele movimento e começou a chorar.
A onda mexia com muita força e tive a nítida impressão que meu pai só não caia no chão porque tinha tanta gente aglomerada, que uns seguravam os outros.
Só que quando a barreira de ferro rompeu, caímos todos, muitos, diretamente no chão. Os policiais estavam desesperados tentando colocar a grade no seu lugar novamente. Queriam colocar  todas as pessoas de volta nos seus lugares também. Mas não havia como, muitos choravam, outros corriam, alguns de tão assustados não conseguiam se mover e permaneciam imóveis sentados no chão.
Era o nosso caso. Minha família ficou toda ali. Sentados no chão, abraçados, como que tentando parecer uma pedra que ninguém pudesse tocar. Meus pais por fora, eu e meus irmãos dentro da redoma que eles criaram com seus corpos para nos proteger.
O motivo, disseram uns jovens à nossa frente, era que encerraram os registros naquele dia. Só amanhã. Tomorrow. Mas ninguém ali aguentava mais esperar, disseram. Nós estávamos chegando... mas quem já estava ali a semanas, não queria ouvir Tomorrow. Queria ouvir Today.
Today! Today! Era isso que a multidão começou a gritar.. Tinha muita gente nervosa falando nossa língua; falando todos ao mesmo tempo. Choro. Adultos exaltados esbravejando. Outros lamentando-se, jogavam-se ao chão. Crianças choravam nos colos dos pais. Eu e meus irmãos não chorávamos. Acho que é porque nossos pais não gritavam, nem se jogaram no chão, nem nada. Eles apenas nos seguravam firmes e, agora já em pé, conosco no colo, desviavam das pessoas que passavam correndo. Meu pai fez sinal para minha mãe, para irem para a praça.
Paramos sob uma árvore e ficamos observando. Que confusão! As pessoas tinham perdido o controle de tão nervosas que estavam. Pessoas de colete amarelo tentavam ajudá-las. Quem aceitava, ganhava uma cadeira, uma garrafa d’água e um voluntário para lhe acalmar.
Ficamos ali debaixo da árvore, todos juntos. Segurando uns nos outros enquanto passavam carros da polícia, ambulâncias, e pessoas correndo. Tudo aquilo deve ter durado alguns minutos, mas pareceram horas. Por fim, carros e jipes do exército grego chegaram com sirenes disparadas. Os soldados desceram sem armas, apenas com cordas para fazer a contenção da multidão. Eles tinham uma tarja branca no braço direito. Era sinal de paz, meu pai disse. Ainda podíamos ouvir, vez por outra, os gritos acalorados: Today! Today!

Comments

  1. A cada capítulo se torna mais a angustiante a epopeia dos personagens imigrantes.

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