Cap. 13 - Empurrados para fora
Mesmo quando eu tinha uma janela, gostava de observar os cachorros e os passarinhos. Ficava acompanhando eles com os olhos, para ver se descobria se estavam no caminho de volta pra suas “casas” ou se estavam em alguma viagem por alimento. Eu gostava disso. De ver as cortinas das outras casas, de imaginar como era lá dentro. Se seus tapetes eram tão bonitos como os nossos. Se sua comida era tão saborosa. Imaginava as cadeiras, as almofadas. Imaginava e imaginava.
Acho que nunca olhei para alguém com raiva. Mesmo assim, eu sempre soube que nem todas as pessoas são boas. Era uma criança, não um móvel, por isso eu sabia. Minha mãe e suas recomendações. A saída da escola. Os soldados de um lado, os soldados contra esses, e aqueles outros que não dava pra saber de que lado estavam. Nos últimos tempos em Aleppo eles foram aumentando, eram vistos por todos os lados. Lançavam bombas. Quem lança uma bomba numa escola? Gente ruim. Por isso eu sabia que nem todas as pessoas são boas. Eles acabaram com minha escola. Mas mesmo assim, eu não sentia raiva. O que eu sentia, naquela época, não era bem um sentimento, mas uma pergunta. Por que algumas pessoa têm tanto ódio?
Naquela manhã, porém, na estação de Idomeni, senti raiva. Não podia compreender porque as pessoas queriam nos ver longe dali. Nem sei se queriam que fôssemos para algum lugar. Queriam que desaparecêssemos. Saíssemos da frente de seus olhos.
Os policiais entraram armados na estação e aos gritos mandaram que saíssemos. As pessoas que demoraram mais para levantar seu "acampamento" foram puxadas pelo braço. "Go! Go! Go". Estávamos indo o mais rápido que podíamos, mas estávamos todos cansados. Alguns ainda dormiam quando nossa "retirada" começou.
Do lado de fora da estação, sem enxergar muito bem por causa do clarão do sol, ouvimos os gritos raivosos. "Go out refugees!". Aos poucos vimos o que não queríamos ter visto. Pessoas com cartazes e faixas. Outras com os punhos cerrados. Gritavam. Esbravejavam.
As últimas palavras de meu pai aquela manhã foram: "Não precisava nada disso". "Por que não pediram para sairmos simplesmente?". Depois ele ficou calado. Apenas fazia sinais para nós. Minha mãe estava muito assustada. Yusef e Najma choravam.
Meu pai me segurou pela mão por um longo tempo. Fomos andando. Ele trazia Najma em seu colo. Minha mãe carregava Yusef. Caminhamos sem saber para onde estávamos indo.
Avistamos uma enorme cerca de arame, bem ao longe. Era fronteira com a cidade de Gevgelija, na Macedônia. O projeto inicial de meus pais era seguir de trem da estação de Idomeni até Tabanovce, também na Macedônia, mas já na fronteira com a Sérvia. Deveria ser uma viagem de quatro horas. Mas como fomos expulsos da estação, só restava atravessar a pé a fronteira e entrar em Gevgelija, para tentar viajar pela estação de trem de lá. A consequência disso era mais uma fronteira, mais uma barreira para atravessar.
Estava claro que havia um problema ali na fronteira. Disseram que na manhã seguinte seria aberta, então, para não perder a oportunidade, dormimos no relento aquela noite. Não foi ruim, estávamos tão cansados. E tínhamos o tapete e cobertores. Dormimos. Até o dia amanhecer. A barreira não foi aberta naquela manhã, nem à tarde. Outra noite.
Mais uma.
Entramos no terceiro dia ao relento. O sol incomodava, pois, embora estivesse frio, o calor do sol aquecia as roupas e a pele coçava. Minha mãe sentou-se debaixo de uma árvore magrinha, que mal dava sombra, por volta do meio dia, e chorou. Ela chorou muito. Estava muito cansada. Para irmos ao banheiro precisávamos caminhar muito. Ela e meu pai se revezavam para dormir, pois tinham medo de aproveitadores. Meus irmãos choravam muito, não estavam tranquilos como nos outros acampamentos. E as pessoas boas vinham pouco ali. Vi meu pai tentando consolar minha mãe. Sua esposa. Mas ele acabou chorando também. Senti raiva novamente. Por que tinham ódio de nós naquele lugar? O que fizemos? Eu era uma criança, ainda não podia entender esse tipo de maldade. Nem as outras que nos fariam mais adiante.
Depois de algum tempo, meu pai nos deixou ali sentados. À distância, vi quando conversou com alguns homens. Depois falou ao celular com alguém. Depois atendeu um telefonema.
Quando voltou para nós, ele e minha mãe conversaram algo que não consegui ouvir. Falaram baixinho. Minha mãe acenou positivamente com a cabeça.
Meus pais mudaram muito desde que tudo começou. Voltaram a ficar calados e tensos como estavam ainda em nossa casa nas últimas semanas, depois dos bombardeios. Mas quando saímos de Allepo, nos dias na Turquia, mesmo sendo dias difíceis, eles estavam mais felizes. Sorriam. Brincavam conosco. Agora, desde que fomos expulsos da estação, estavam fatigados. Eu procurava obedecer e ajudar com meus irmãos. Não fiz pergunta alguma naqueles dias. Nem contei que meu tênis já havia aberto um furo por baixo e eu podia sentir o chão dependendo do jeito que eu pisava. Isso podia esperar pra depois, quando estivessem mais calmos.
Então eles me avisaram que iríamos andar. Prontamente fiquei de pé. Já estava anoitecendo e seguimos pela única estrada que havia por ali. Não estávamos sozinhos, havia um bom grupo de pessoas conosco. Os carros passavam por nós com os faróis fortes acesos. Alguns aceleravam. Outros diminuíam a velocidade para nos observar. Ou gritar que devíamos ir embora logo. De dentro de suas casas, pessoas olhavam curiosas. Nós caminhávamos.
De repente um carro saiu da estrada e seguiu bem devagar por dentro de um campo. Nós o seguimos a pé. Então ele parou. Os homens do nosso grupo o cercaram. Todos entregaram dinheiro para o motorista do carro. Esse mandou a gente ficar ali e esperar.
Sentamos no chão e esperamos.
Acho que nunca olhei para alguém com raiva. Mesmo assim, eu sempre soube que nem todas as pessoas são boas. Era uma criança, não um móvel, por isso eu sabia. Minha mãe e suas recomendações. A saída da escola. Os soldados de um lado, os soldados contra esses, e aqueles outros que não dava pra saber de que lado estavam. Nos últimos tempos em Aleppo eles foram aumentando, eram vistos por todos os lados. Lançavam bombas. Quem lança uma bomba numa escola? Gente ruim. Por isso eu sabia que nem todas as pessoas são boas. Eles acabaram com minha escola. Mas mesmo assim, eu não sentia raiva. O que eu sentia, naquela época, não era bem um sentimento, mas uma pergunta. Por que algumas pessoa têm tanto ódio?
Naquela manhã, porém, na estação de Idomeni, senti raiva. Não podia compreender porque as pessoas queriam nos ver longe dali. Nem sei se queriam que fôssemos para algum lugar. Queriam que desaparecêssemos. Saíssemos da frente de seus olhos.
Os policiais entraram armados na estação e aos gritos mandaram que saíssemos. As pessoas que demoraram mais para levantar seu "acampamento" foram puxadas pelo braço. "Go! Go! Go". Estávamos indo o mais rápido que podíamos, mas estávamos todos cansados. Alguns ainda dormiam quando nossa "retirada" começou.
Do lado de fora da estação, sem enxergar muito bem por causa do clarão do sol, ouvimos os gritos raivosos. "Go out refugees!". Aos poucos vimos o que não queríamos ter visto. Pessoas com cartazes e faixas. Outras com os punhos cerrados. Gritavam. Esbravejavam.
As últimas palavras de meu pai aquela manhã foram: "Não precisava nada disso". "Por que não pediram para sairmos simplesmente?". Depois ele ficou calado. Apenas fazia sinais para nós. Minha mãe estava muito assustada. Yusef e Najma choravam.
Meu pai me segurou pela mão por um longo tempo. Fomos andando. Ele trazia Najma em seu colo. Minha mãe carregava Yusef. Caminhamos sem saber para onde estávamos indo.
Avistamos uma enorme cerca de arame, bem ao longe. Era fronteira com a cidade de Gevgelija, na Macedônia. O projeto inicial de meus pais era seguir de trem da estação de Idomeni até Tabanovce, também na Macedônia, mas já na fronteira com a Sérvia. Deveria ser uma viagem de quatro horas. Mas como fomos expulsos da estação, só restava atravessar a pé a fronteira e entrar em Gevgelija, para tentar viajar pela estação de trem de lá. A consequência disso era mais uma fronteira, mais uma barreira para atravessar.
Estava claro que havia um problema ali na fronteira. Disseram que na manhã seguinte seria aberta, então, para não perder a oportunidade, dormimos no relento aquela noite. Não foi ruim, estávamos tão cansados. E tínhamos o tapete e cobertores. Dormimos. Até o dia amanhecer. A barreira não foi aberta naquela manhã, nem à tarde. Outra noite.
Mais uma.
Entramos no terceiro dia ao relento. O sol incomodava, pois, embora estivesse frio, o calor do sol aquecia as roupas e a pele coçava. Minha mãe sentou-se debaixo de uma árvore magrinha, que mal dava sombra, por volta do meio dia, e chorou. Ela chorou muito. Estava muito cansada. Para irmos ao banheiro precisávamos caminhar muito. Ela e meu pai se revezavam para dormir, pois tinham medo de aproveitadores. Meus irmãos choravam muito, não estavam tranquilos como nos outros acampamentos. E as pessoas boas vinham pouco ali. Vi meu pai tentando consolar minha mãe. Sua esposa. Mas ele acabou chorando também. Senti raiva novamente. Por que tinham ódio de nós naquele lugar? O que fizemos? Eu era uma criança, ainda não podia entender esse tipo de maldade. Nem as outras que nos fariam mais adiante.
Depois de algum tempo, meu pai nos deixou ali sentados. À distância, vi quando conversou com alguns homens. Depois falou ao celular com alguém. Depois atendeu um telefonema.
Quando voltou para nós, ele e minha mãe conversaram algo que não consegui ouvir. Falaram baixinho. Minha mãe acenou positivamente com a cabeça.
Meus pais mudaram muito desde que tudo começou. Voltaram a ficar calados e tensos como estavam ainda em nossa casa nas últimas semanas, depois dos bombardeios. Mas quando saímos de Allepo, nos dias na Turquia, mesmo sendo dias difíceis, eles estavam mais felizes. Sorriam. Brincavam conosco. Agora, desde que fomos expulsos da estação, estavam fatigados. Eu procurava obedecer e ajudar com meus irmãos. Não fiz pergunta alguma naqueles dias. Nem contei que meu tênis já havia aberto um furo por baixo e eu podia sentir o chão dependendo do jeito que eu pisava. Isso podia esperar pra depois, quando estivessem mais calmos.
Então eles me avisaram que iríamos andar. Prontamente fiquei de pé. Já estava anoitecendo e seguimos pela única estrada que havia por ali. Não estávamos sozinhos, havia um bom grupo de pessoas conosco. Os carros passavam por nós com os faróis fortes acesos. Alguns aceleravam. Outros diminuíam a velocidade para nos observar. Ou gritar que devíamos ir embora logo. De dentro de suas casas, pessoas olhavam curiosas. Nós caminhávamos.
De repente um carro saiu da estrada e seguiu bem devagar por dentro de um campo. Nós o seguimos a pé. Então ele parou. Os homens do nosso grupo o cercaram. Todos entregaram dinheiro para o motorista do carro. Esse mandou a gente ficar ali e esperar.
Sentamos no chão e esperamos.
Depois de serem expulsos com manifestações e protestos, inclusive kadar, pai de Daniyal, junto com outros homens do grupo, buscam uma alternativa para continuar a viagem. Tanto é que entregam dinheiro para um as "atravessador". Que poderá acontecer?
ReplyDeleteAqui, a percepção da rejeição a estrangeiros sentida por Danyal adquire forma concreta, real. Mais obstáculos surgem e a família é tomada por sentimentos de medo , insegurança.
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