Cap. 14 - No contêiner
A família passou a noite à beira da estrada, junto com um grupo de pessoas. Algumas famílias e jovens que viajavam sozinhos. Todos sírios. O menino Daniyal não poderia lembrar dessa espera que se estendeu até ao amanhecer do dia seguinte. O motivo é que Labibah deu uma dose dobrada de remédio pra enjoo às crianças. Ela não havia feito isso até aquele dia, pois não concordava com essa prática. Embora tivesse percebido nos acampamentos que vários pais o fizessem. Assim, nem no frio da Síria, nem na travessia do mar, nem mesmo na exaustão na Grécia dera remédio para seus filhos dormirem. Mas aquela noite sucumbiu e medicou as crianças. Agasalhou-as e mais uma vez dormiu um sono intermitente. Impossível entregar-se totalmente ao sono. Vigiou seus filhos por toda a madrugada. Pediu a Deus que os guardasse da viagem que fariam. O perigo era grande. Estavam cientes, mas era preciso prosseguir a viagem.
Ao amanhecer, de um dia que prometia ser de sol forte novamente, acordaram com o barulho de um grande caminhão. Aos poucos, o veículo foi parando até estacionar à beira da estrada, um pouco adiante de onde estavam. Dois homens desceram da cabine e gritaram numa língua estranha, mas todos entenderam que deviam correr. Mais uma vez, o casal reuniu suas coisas, pegaram seus filhos e correram. O grupo todo somava umas 50 pessoas e começaram a entrar no contêiner.
"It’s safe?" – Kadar perguntou enquanto ajudava sua família, no mesmo esquema de sempre: Labibah com Yusef, depois Najma, depois Daniyal. Só que em vez de subir, ficou parado em frente ao homem na porta traseira do caminhão, trancando a passagem das demais pessoas. Repetiu a pergunta. A resposta foi dada num tom de voz áspero. "Claro! O que você pensa? Tem ar condicionado aí por causa da carga". O homem se dirigiu para os demais que ainda não haviam "embarcado": "This is food! Brad and cookies!" – disse apontando para as caixas e para os tubos de ventilação. Kadar então entrou.
Dentro do contêiner havia espaço no meio de corredores entre prateleiras onde estavam caixas de plástico cheias de pães e biscoitos. As prateleiras formavam um jogo da velha. Os grupos se acomodaram nesses corredores e a porta foi fechada. Assim que o motor do caminhão ligou, uma luz fraca acendeu. Ouviram passos ao lado do caminhão, a porta da cabine bater. E sentiram quando começaram a se mover. Alguns minutos se passaram e a luz foi apagada, deixando-os no escuro.
Rodaram por horas. Quando o caminhão parou, ficaram esperando que a porta fosse aberta, mas isso não aconteceu. O motor foi ligado e rodaram mais alguns metros, bem devagar, até parar novamente. Os adultos, até então em silêncio, começaram a conversar. Uma família com duas crianças pequenas já não tinha água. Kadar entregou para eles uma das duas garrafas que ainda tinham.
Ninguém ali estava gostando do impasse. Deviam ter descido naquele lugar, ou um pouco antes, pois o número de horas combinado para a viagem já havia excedido. Começaram a bater nas paredes do caminhão. Mas ninguém pareceu ouvir. Nenhuma resposta. Nada.
Novas conversas. Poderia ser uma interrupção da estrada, um conserto do asfalto, talvez. Poderia ser mais grave, um acidente. Poderia haver barreira policial adiante, e nesse caso, motorista e seu companheiro, tendo sido avisados, estavam esperando um pouco para poder deixá-los num local seguro. Não sabiam. apenas supunham o que poderia estar acontecendo.
De vez em quando, paravam de conversar. Assim, intercalavam silêncio e o barulho ensurdecedor de batidas nas paredes laterais do contêiner. Nada. Um homem teve a ideia de ficarem em absoluto silêncio e tentar ouvir o movimento do lado de fora. Até as crianças cooperaram e ficaram quietas. Puderam ouvir alguns carros passando ao longe, eram poucos, com certeza. Também era certo que não estavam mais na estrada principal. "Devemos estar num refúgio!", disse o homem que propôs o silêncio.
Algumas pessoas ligaram suas lanternas e luzes do celular. Pensaram em telefonar para pedir ajuda. Mas pedir para quem? As autoridades da Macedônia certamente os deportariam. Avisar algum parente seria apenas para preocupá-los. Enquanto levantavam suas hipóteses de soluções, Labibah começou orações em voz baixa. Aos poucos, outras pessoas passaram a acompanhá-la, e logo passaram a orar em voz alta. Yusef, no colo de sua mãe também juntou suas mãos gordinhas.
As crianças mais novas (deviam ser umas dez) choravam muito. Alguns adultos também. Quanto desespero! Alguém precisava ouvir!
A porta não abriu.
Quando cansaram de fazer barulho, perceberam o calor. Suor escorria de todas as pessoas dentro do caminhão. Evidente! O sistema de ventilação dependia do motor do caminhão em funcionamento. Não demorou muito para perceberem que o ar diminuía.
O clamor de Labibah foi comovente. Implorou a Deus e a Kadar para que fizessem alguma coisa! Foi quando alguns homens arrancaram uma barra de ferro de uma prateleira e começaram a bater contra a porta do caminhão. Ali não conseguiram nada. A porta era reforçada e estava muito bem trancada. O desespero estava no rosto de todos!
Kadar e outros dois homens decidiram empurrar com força a barra de ferro contra uma lateral do contêiner. As pessoas de um dos corredores abriram espaço para que eles pudessem pegar impulso. Impuseram muita energia. A cada pancada, ganhavam esperança, pois a lata do contêiner amassava um pouco mais.
Outros se ofereceram para revezar com os três homens que iniciaram as batidas contra a lataria. A sensação de abafamento e pouco ar já havia se tornado puro sufocamento. Realmente não havia ar suficiente ali. Todos começaram a sentir uma profunda dor nas costas, difícil de suportar. Aspiravam o ar com toda a força, mas não conseguiam mais se manter em pé. Algumas tinham os rostos vermelhos. Outras desmaiaram.
Então, num último ímpeto, Kadar e outros três homens empurraram a barra de ferro mais uma vez. No impulso, caíram no chão, pois a barra atravessou a lataria. Rapidamente, a puxaram da fenda no contêiner. O ar ainda era pouco, mas suficiente para fazer cessar a dor angustiante nas costas e no peito. A situação ainda estava crítica. Haviam pessoas desmaiadas e as acordadas transpiravam muito.
Labibah deixou Yusef no colo do irmão e foi ajudar as pessoas a se reanimarem. Umas recobravam os sentidos, outras não. Mas, felizmente, não fora tarde demais para ninguém naquele dia.
Os homens passaram a trabalhar no orifício criado na parede do contêiner e, com muita dificuldade, aos poucos foram alargando a circunferência. Não morreram por causa daquele pequeno buraco que conseguiram abrir.
De repente surgiu uma ideia. Amarraram uma camisa no bastão de ferro e colocaram para fora do caminhão, na esperança de que alguém enxergasse. Esperavam convencer as pessoas a socorrê-los sem denunciá-los. Só precisavam que a porta fosse aberta.
A resposta veio rápido. Logo ouviram um carro se aproximar. Escutaram vozes que perguntaram o que estava acontecendo. Responderam com um pedido de socorro, vários ao mesmo tempo: Help!
Do lado de fora, arrombaram um cadeado e finalmente abriram a porta. Todos puderam sair. Os que saíram primeiro ajudaram os demais a descerem. Kadar voltou ao caminhão, pois não queria deixar nenhuma pessoa desmaiada para trás. Foi ele quem carregou para fora os dois adolescentes que viajavam sozinhos. Outras pessoas ajudaram a colocá-los no gramado à beira do caminho e a reanimá-los.
Enquanto alguns choravam e outros recobravam as forças, ouvimos uma das pessoas que nos socorreram telefonando. Quatro pessoas estavam no carro que parou para ver o que estava acontecendo. Dentre elas, uma mulher idosa estava visivelmente com medo. Ouviram, ela repetir uma palavra em sua língua. Ela parecia realmente alarmada.
Kadar entendeu que ela estava avisando o serviço de emergências de seu país. A viagem era para durar quatro horas até uma parada. Iriam descer do caminhão, respirar o ar puro, e voltar para viajar mais quatro horas. Como já haviam viajado por cerca de seis horas, poderiam já ter entrado na Sérvia, deduziu. Por qual motivo os atravessadores não puderam parar antes? Não sabia, mas não era bom já estarem na Sérvia, pois isso aumentava as chances de serem deportados.
O plano da viagem negociada com atravessadores incluía atravessar a fronteira da Grécia com a Macedônia, depois da Macedônia com a Sérvia, e levar o grupo até Smederevo, onde era preciso fazer novo registro para seguir, através a Hungria - o país mais rígido na travessia, até Alemanha.
Para Kadar e o grupo de pessoas que entraram no caminhão em Idomeni, o plano estava traçado. Após se registrarem em Smeredevo, pegariam um ônibus próprio para refugiados que os levaria até a Áustria. Essa era a maneira legalizada de atravessar a Hungria. Da Áustria, seguiriam de trem para a Alemanha, o destino. Mas ali na Sérvia estavam clandestinamente até chegar em Smeredevo. Sentiam-se vulneráveis e temiam a deportação.
Deportação. Aquela palavra amedrontadora fazia jus a seu significado: “voltar para o porto de origem”. Ninguém ali desejava voltar para o "porto" chamado Síria.
Então Kadar avisou Labibah e as crianças que iriam entrar no mato que tinham a sua frente para se esconder. Quando passaram pelos meninos sentados na grama, Kadar teve compaixão e perguntou: Querem nos acompanhar?
Foi assim que conheceram Syed e Mohanmad. Eles tinham 15 e 16 anos e viajavam sem ninguém de suas famílias. Haviam fugido de sua cidade, quando ficaram sabendo que os jihadistas estavam chegando para recrutar os jovens como soldados. Eles não queriam lutar, então fugiram com pouco dinheiro, mas o suficiente para chegar a Lesbos. Dali em diante viajaram de navio, trem e ônibus, como os demais refugiados. Naquela manhã na Macedônia ofereceram o pouco dinheiro que ainda tinham para o motorista do caminhão. A viagem deles foi “por fora” da negociação feita com os atravessadores. O motorista olhou os adolescentes e decidiu tirar vantagem da situação em que se encontravam.
Assim, a família de Kadar e os dois jovens foram caminhando, sem chamar a atenção do grupo em torno do caminhão. Não ficaram sabendo o que aconteceu com aquelas pessoas. Talvez foram deportadas. Ou então, foram ajudadas pelas autoridades sérvias a seguir a viagem como refugiados. Labibah iria mais tarde rever a decisão que tomaram aquela noite. Nunca considerou uma escolha errada. Ela só se questiona a respeito de Syed e Mohanmad. Deviam ter deixado eles no gramado ao lado do caminhão. Mas também pensa que não devem se culpar por ter compaixão. Mesmo que uma virtude cause mal, ainda assim é uma virtude. Não é bom julgá-la um erro.
Entraram mato a dentro, uma pequena floresta.
Ao amanhecer, de um dia que prometia ser de sol forte novamente, acordaram com o barulho de um grande caminhão. Aos poucos, o veículo foi parando até estacionar à beira da estrada, um pouco adiante de onde estavam. Dois homens desceram da cabine e gritaram numa língua estranha, mas todos entenderam que deviam correr. Mais uma vez, o casal reuniu suas coisas, pegaram seus filhos e correram. O grupo todo somava umas 50 pessoas e começaram a entrar no contêiner.
"It’s safe?" – Kadar perguntou enquanto ajudava sua família, no mesmo esquema de sempre: Labibah com Yusef, depois Najma, depois Daniyal. Só que em vez de subir, ficou parado em frente ao homem na porta traseira do caminhão, trancando a passagem das demais pessoas. Repetiu a pergunta. A resposta foi dada num tom de voz áspero. "Claro! O que você pensa? Tem ar condicionado aí por causa da carga". O homem se dirigiu para os demais que ainda não haviam "embarcado": "This is food! Brad and cookies!" – disse apontando para as caixas e para os tubos de ventilação. Kadar então entrou.
Dentro do contêiner havia espaço no meio de corredores entre prateleiras onde estavam caixas de plástico cheias de pães e biscoitos. As prateleiras formavam um jogo da velha. Os grupos se acomodaram nesses corredores e a porta foi fechada. Assim que o motor do caminhão ligou, uma luz fraca acendeu. Ouviram passos ao lado do caminhão, a porta da cabine bater. E sentiram quando começaram a se mover. Alguns minutos se passaram e a luz foi apagada, deixando-os no escuro.
Rodaram por horas. Quando o caminhão parou, ficaram esperando que a porta fosse aberta, mas isso não aconteceu. O motor foi ligado e rodaram mais alguns metros, bem devagar, até parar novamente. Os adultos, até então em silêncio, começaram a conversar. Uma família com duas crianças pequenas já não tinha água. Kadar entregou para eles uma das duas garrafas que ainda tinham.
Ninguém ali estava gostando do impasse. Deviam ter descido naquele lugar, ou um pouco antes, pois o número de horas combinado para a viagem já havia excedido. Começaram a bater nas paredes do caminhão. Mas ninguém pareceu ouvir. Nenhuma resposta. Nada.
Novas conversas. Poderia ser uma interrupção da estrada, um conserto do asfalto, talvez. Poderia ser mais grave, um acidente. Poderia haver barreira policial adiante, e nesse caso, motorista e seu companheiro, tendo sido avisados, estavam esperando um pouco para poder deixá-los num local seguro. Não sabiam. apenas supunham o que poderia estar acontecendo.
De vez em quando, paravam de conversar. Assim, intercalavam silêncio e o barulho ensurdecedor de batidas nas paredes laterais do contêiner. Nada. Um homem teve a ideia de ficarem em absoluto silêncio e tentar ouvir o movimento do lado de fora. Até as crianças cooperaram e ficaram quietas. Puderam ouvir alguns carros passando ao longe, eram poucos, com certeza. Também era certo que não estavam mais na estrada principal. "Devemos estar num refúgio!", disse o homem que propôs o silêncio.
Algumas pessoas ligaram suas lanternas e luzes do celular. Pensaram em telefonar para pedir ajuda. Mas pedir para quem? As autoridades da Macedônia certamente os deportariam. Avisar algum parente seria apenas para preocupá-los. Enquanto levantavam suas hipóteses de soluções, Labibah começou orações em voz baixa. Aos poucos, outras pessoas passaram a acompanhá-la, e logo passaram a orar em voz alta. Yusef, no colo de sua mãe também juntou suas mãos gordinhas.
As crianças mais novas (deviam ser umas dez) choravam muito. Alguns adultos também. Quanto desespero! Alguém precisava ouvir!
A porta não abriu.
Quando cansaram de fazer barulho, perceberam o calor. Suor escorria de todas as pessoas dentro do caminhão. Evidente! O sistema de ventilação dependia do motor do caminhão em funcionamento. Não demorou muito para perceberem que o ar diminuía.
O clamor de Labibah foi comovente. Implorou a Deus e a Kadar para que fizessem alguma coisa! Foi quando alguns homens arrancaram uma barra de ferro de uma prateleira e começaram a bater contra a porta do caminhão. Ali não conseguiram nada. A porta era reforçada e estava muito bem trancada. O desespero estava no rosto de todos!
Kadar e outros dois homens decidiram empurrar com força a barra de ferro contra uma lateral do contêiner. As pessoas de um dos corredores abriram espaço para que eles pudessem pegar impulso. Impuseram muita energia. A cada pancada, ganhavam esperança, pois a lata do contêiner amassava um pouco mais.
Outros se ofereceram para revezar com os três homens que iniciaram as batidas contra a lataria. A sensação de abafamento e pouco ar já havia se tornado puro sufocamento. Realmente não havia ar suficiente ali. Todos começaram a sentir uma profunda dor nas costas, difícil de suportar. Aspiravam o ar com toda a força, mas não conseguiam mais se manter em pé. Algumas tinham os rostos vermelhos. Outras desmaiaram.
Então, num último ímpeto, Kadar e outros três homens empurraram a barra de ferro mais uma vez. No impulso, caíram no chão, pois a barra atravessou a lataria. Rapidamente, a puxaram da fenda no contêiner. O ar ainda era pouco, mas suficiente para fazer cessar a dor angustiante nas costas e no peito. A situação ainda estava crítica. Haviam pessoas desmaiadas e as acordadas transpiravam muito.
Labibah deixou Yusef no colo do irmão e foi ajudar as pessoas a se reanimarem. Umas recobravam os sentidos, outras não. Mas, felizmente, não fora tarde demais para ninguém naquele dia.
Os homens passaram a trabalhar no orifício criado na parede do contêiner e, com muita dificuldade, aos poucos foram alargando a circunferência. Não morreram por causa daquele pequeno buraco que conseguiram abrir.
De repente surgiu uma ideia. Amarraram uma camisa no bastão de ferro e colocaram para fora do caminhão, na esperança de que alguém enxergasse. Esperavam convencer as pessoas a socorrê-los sem denunciá-los. Só precisavam que a porta fosse aberta.
A resposta veio rápido. Logo ouviram um carro se aproximar. Escutaram vozes que perguntaram o que estava acontecendo. Responderam com um pedido de socorro, vários ao mesmo tempo: Help!
Do lado de fora, arrombaram um cadeado e finalmente abriram a porta. Todos puderam sair. Os que saíram primeiro ajudaram os demais a descerem. Kadar voltou ao caminhão, pois não queria deixar nenhuma pessoa desmaiada para trás. Foi ele quem carregou para fora os dois adolescentes que viajavam sozinhos. Outras pessoas ajudaram a colocá-los no gramado à beira do caminho e a reanimá-los.
Enquanto alguns choravam e outros recobravam as forças, ouvimos uma das pessoas que nos socorreram telefonando. Quatro pessoas estavam no carro que parou para ver o que estava acontecendo. Dentre elas, uma mulher idosa estava visivelmente com medo. Ouviram, ela repetir uma palavra em sua língua. Ela parecia realmente alarmada.
Kadar entendeu que ela estava avisando o serviço de emergências de seu país. A viagem era para durar quatro horas até uma parada. Iriam descer do caminhão, respirar o ar puro, e voltar para viajar mais quatro horas. Como já haviam viajado por cerca de seis horas, poderiam já ter entrado na Sérvia, deduziu. Por qual motivo os atravessadores não puderam parar antes? Não sabia, mas não era bom já estarem na Sérvia, pois isso aumentava as chances de serem deportados.
O plano da viagem negociada com atravessadores incluía atravessar a fronteira da Grécia com a Macedônia, depois da Macedônia com a Sérvia, e levar o grupo até Smederevo, onde era preciso fazer novo registro para seguir, através a Hungria - o país mais rígido na travessia, até Alemanha.
Para Kadar e o grupo de pessoas que entraram no caminhão em Idomeni, o plano estava traçado. Após se registrarem em Smeredevo, pegariam um ônibus próprio para refugiados que os levaria até a Áustria. Essa era a maneira legalizada de atravessar a Hungria. Da Áustria, seguiriam de trem para a Alemanha, o destino. Mas ali na Sérvia estavam clandestinamente até chegar em Smeredevo. Sentiam-se vulneráveis e temiam a deportação.
Deportação. Aquela palavra amedrontadora fazia jus a seu significado: “voltar para o porto de origem”. Ninguém ali desejava voltar para o "porto" chamado Síria.
Então Kadar avisou Labibah e as crianças que iriam entrar no mato que tinham a sua frente para se esconder. Quando passaram pelos meninos sentados na grama, Kadar teve compaixão e perguntou: Querem nos acompanhar?
Foi assim que conheceram Syed e Mohanmad. Eles tinham 15 e 16 anos e viajavam sem ninguém de suas famílias. Haviam fugido de sua cidade, quando ficaram sabendo que os jihadistas estavam chegando para recrutar os jovens como soldados. Eles não queriam lutar, então fugiram com pouco dinheiro, mas o suficiente para chegar a Lesbos. Dali em diante viajaram de navio, trem e ônibus, como os demais refugiados. Naquela manhã na Macedônia ofereceram o pouco dinheiro que ainda tinham para o motorista do caminhão. A viagem deles foi “por fora” da negociação feita com os atravessadores. O motorista olhou os adolescentes e decidiu tirar vantagem da situação em que se encontravam.
Assim, a família de Kadar e os dois jovens foram caminhando, sem chamar a atenção do grupo em torno do caminhão. Não ficaram sabendo o que aconteceu com aquelas pessoas. Talvez foram deportadas. Ou então, foram ajudadas pelas autoridades sérvias a seguir a viagem como refugiados. Labibah iria mais tarde rever a decisão que tomaram aquela noite. Nunca considerou uma escolha errada. Ela só se questiona a respeito de Syed e Mohanmad. Deviam ter deixado eles no gramado ao lado do caminhão. Mas também pensa que não devem se culpar por ter compaixão. Mesmo que uma virtude cause mal, ainda assim é uma virtude. Não é bom julgá-la um erro.
Entraram mato a dentro, uma pequena floresta.
Muito bom Cris! E essa de deixar a gente com gosto de "quero mais" só aguça a vontade de ler kkkk
ReplyDeleteEste capítulo é por demais angustiante, especialmente o trajeto dentro de um contêiner onde quase todos foram à óbito por asfixia (50 pessoas empilhadas numa "caixa" hermeticamente fechada.
ReplyDeletePodemos notar o grau de maldade do ser humano, explorando e abandonando os imigrantes dentro do caminhão para morrerem.
Por outro lado, em contraste ressalte-se a compaixão de Kadar em relação aos adolescentes que viajavam sem família.
Sem sombra de dúvida, este foi o capítulo mais angustiante.
E tem mais pela frente, amigos!
ReplyDeleteEsse episódio escrevi influenciada pelas notícias da época. Mas me surpreendi essa semana ao ler novas notícias de transporte clandestino de imigrantes na Europa. Por isso, infelizmente, às vezes o "homem é o lobo do homem". Muito triste.
Deveras angustiante imaginar o momento em que as pessoas percebem que foram abandonadas num caminhão trancado. Mas o instinto de sobrevivência é maior .
ReplyDeleteMinha pergunta, acho que é existencial... situações de crise geram comportamentos paradoxais. Se, por um lado, a índole de alguns os leva a exploração cruel da dor (como muitos atravessadores), por outro, exterioriza a compaixão. A pergunta é: exatamente o que define reações tão opostas?
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