Cap. 27 - Qual o sentido?

A cena que vi ao abrir a porta de nosso apartamento foi absurda. Nossa porta ficava numa das pontas do corredor. A porta da família de Said e Latifa ficava na outra. No corredor havia três portas, as quais levavam a três famílias. Na primeira porta, logo à esquerda de nosso lar, moravam Abgail e Rashid, com seu pequeno bebê, Yusef como o meu. A porta seguinte pertencia à família de Talmid, o casal, os pais dele e os três filhos adolescentes. Na terceira porta ainda estavam Mohamed e sua esposa Jasmine que trabalhava comigo no hospital. Eles não tinham filhos e por isso, sempre que podiam, vinham à nossa casa passar um tempo conosco e as crianças. Jasmine amava meus filhos e vivia agradando-os com seus biscoitos de gengibre e seu tabule delicioso, carregado em hortelã. Como o tabule daquele dia, que ela trouxera à minha casa no começo da tarde e que na hora da explosão espalhava o aroma em nossa mesa.  A cena diante de mim era totalmente desprovida de sentido. A porta entreaberta mostrava o clarão do sol, embora a poeira branca fosse igualmente nítida. Por causa do estado de alerta não fui até a porta, mas vi, quando Kadar (ele realmente estava na escadaria, quando a bomba tocou o solo tão perto de nós) foi até lá e empurrou a porta. Não havia mais apartamento da família de Said e Latifa.  Desaparecera. Com urgência, repassei em minha cabeça a planta baixa do edifício. Eram quatro andares iguais ao nosso. Estávamos no segundo. Então, eram 20 apartamentos. Quatro na mesma ponta que o apartamento que agora não existia mais. Os quatro desapareceram. Ninguém ali seria mais o mesmo. Ou porque teria morrido ou porque teriam tanto medo, que se tornariam escravos do medo de viver. Ninguém seria mais o mesmo.
Eu queria encontrar o sentido naquele absurdo.
O sentido. O sentido, por favor. Minha mente pedia o sentido para então dar o comando certo ao cérebro. Se houvesse sentido, ela daria a ordem de continuar emitindo fortes estímulos ao corpo. Senão, desligaria. Meu cérebro só aguardava esse comando. A maioria das pessoas desmaia quando chega a esse ponto. Mas naquele dia minha mente não esperou o sentido e deu a ordem ao meu cérebro e disse: Vai!
Imediatamente ele obedeceu e passou a dar ordens rápidas, como um comandante de um navio em rota de colisão com um grande Iceberg. Aquele, tendo uma ideia salvadora, faz com que todos os funcionários assumam seus postos e façam o que têm que fazer rapidamente. Minha mente estava assim. Captava cada som, cada ruído, cada grito. Era capaz de discernir os gritos de pavor diante do corpo morto ou de um corpo muito ferido com esperança de vida. Recordo-me dos cabos elétricos arrebentados no meio dos escombros. Devo ter saltado muitos deles para conseguir alcançar a ambulância. “Vai!”, Kadar confirmava o comando do meu cérebro. “Eu cuido de todos aqui”. Todos eram nossas crianças e nossos vizinhos. Todos precisavam de uma orientação, uma voz com decisão que lhes dissesse o que fazer. E Kadar fazia isso muito bem. Retirou todos os vivos e feridos para fora do edifício, e deixou-os sentados no chão do que fora nossa rua. Quando não havia mais o que fazer, já na madrugada, levou nossos filhos para a casa de meus pais. Eles ficaram lá por duas semanas.
Dentro da ambulância, à caminho do hospital, a questão do sentindo deixou claro que não me deixaria em paz naquela longa madrugada. Ouvi outras três explosões estrondosas. Eram bombas em outros bairros. Sabia que a situação no hospital seria caótica. Mas foi pior do que isso.
Ao chegarmos, o hospital havia sido improvisado no porão. Éramos cerca de 20 cirurgiões e cem enfermeiros, que foram chegando junto com os mortos e feridos. Fui instalada em um “bloco cirúrgico”, o qual era constituído de uma maca e alguns aparelhos de controle dos sinais vitais, um respirador e uma cortina de plástico que me separava de outros “blocos”.
O primeiro paciente foi jogado sobre a maca. Um adolescente de uns 15 anos. Um dia Yusef teria 15 anos. Eu não podia imaginá-lo em uma maca de hospital com essa idade. Havia um ferimento no abdômen, de onde jorrava sangue. Abri com os dedos o ferimento e vi que ia fundo, pois havia perfurado seu intestino e seu rim direito. Dei um ponto inicial no intestino, a fim de interromper o sangramento e ele morreu. Tentamos reanimá-lo, mas não houve resposta, nem na próxima tentativa. Seu corpo foi tirado dali e outro foi jogado. Uma menina, no máximo 18 anos. Naquela noite, ao todo dezenove adolescentes foram colocados na minha mesa cirúrgica. Todas minhas intervenções ficaram inacabadas, porque os pacientes morreram antes que eu terminasse o procedimento. Um a um foi retirado. Seus corpos eram levados em lençóis, carreados pelas pontas por duas pessoas. Para onde os levaram não sei. Tão logo um saía, outro era colocado sobre a mesa. Alguns vieram em macas, outros no mesmo sistema do lençol.
Passamos por mais seis bombardeios depois disso. O último foi sem aviso, sem sirenes.
Depois daquela noite em que perdi os dezenove pacientes feridos na mesa cirúrgica improvisada, não fui mais ao hospital. E vieram outros bombardeios, até que depois do sexto, decidimos deixar Aleppo. Contratamos uma “agência” que nos levaria de caminhão para fora da cidade até a casa de meus pais, e depois até a fronteira com a Turquia, para o registro de refugiados.
O barulho desse último bombardeio foi ensurdecedor nos pegou de surpresa. Mas também colocou nossos pés chão. Eu tinha Yusef no colo, Kadar tinha Najma no seu, e ainda pegou Daniyal em suas costas. Fazia muito sentido deixarmos nossa cidade e nossas vidas para trás. Era nosso motivo, o que nos deu forças. Era preciso sair de lá para não morrer.
Por minha própria vida teria ficado no hospital até o fim. Continuaria sussurrando minha fé no ouvido de cada um dos meus pacientes, como fiz por dois anos no hospital de Aleppo. Como fiz em minha última noite como médica, com cada um dos 19 adolescentes. Isso fazia sentido para mim.
Morreria junto com os pacientes algum dia qualquer, de uma hora para outra.Mas fugi por meus filhos. Por minhas próprias crianças. Será que foi egoísmo? Deveríamos ter ficado e lutado por nosso povo?


Comments

  1. Neste capítulo Labibah recorda desde o primeiro bombardeio em Aleppo, até o momento em que decidem abandonar Aleppo p/ salvar a vida de seus filhos. Também e, curiosamente, descobrimos que Labibah era médica cirurgiã, como meu filho Eurico.

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