Cap. 29 - Travessia
A bateria do celular estava em 5%. Eu poderia carregá-la, mas achei que a tomada estava longe para ir até lá. Teria que usar um daqueles carregadores que os voluntários deixaram na estação. Desisti e peguei no sono. Acordei com a voz no alto falante: “Mulheres com crianças – Prioridade no embarque”.
Dentro do trem entendi finalmente e achei o único sentido possível: a viagem. Não me tornei viajante quando deixei a Síria com minha família, mas naquele primeiro bombardeio no bairro de Bustan AL-Basha .
Aquelas bombas me tiraram do meu lugar, roubaram meu trabalho, mudaram meu mundo e instalaram uma questão pelo sentido dentro de mim. A resposta tornou-se uma obsessão.
Kadar estava decidido a cuidar de nós. Levantou-se assim que o trem parou. Gentilmente reuniu os seus e disse: Chegamos. Vamos.
Sabe, fiquei com isso na cabeça. Chegamos. Vamos.
Chegamos. Então deveríamos parar, estacionar. Finalmente sossegar e apenas viver. Mas era preciso continuar, era preciso ir. Não existe essa coisa de chegada absoluta, apenas um “vamos”.
Algo profundamente importante havia acontecido conosco. Com nossa família e dentro de cada um de nós. Fomos mudados pela travessia e não podíamos ficar indiferentes.
A travessia foi uma espécie de trauma. Sim, como os médicos disseram.
Na praça, em estado elevado de estresse, não vi meus filhos. Eles estavam lá. Mas não onde deviam estar, nem onde Daniyal os deixara.
Como o irmão não saía de dentro do banheiro, Najma tomou o irmãozinho pela mão e começou a pedir ajuda. Porém, não houve ninguém que falasse árabe ali na praça. Mais tarde ela contou que pediu para cuidarem de Daniyal, que ele estava com a barriga doendo. Que eu estava dentro do hospital porque seu pai estava doente. Ninguém entendeu o que ela dizia. Então, essas pessoas que a encontraram decidiram ir até o posto policial do outro lado da praça. Dois policiais ainda atendiam a ocorrência das "crianças migrantes desacompanhadas", quando eu desmaiei próximo ao banheiro químico. Haviam chamado um intérprete para ouvir Najma e estavam ocupados com as informações que as pessoas davam. Estavam perto, mas nãos os vi.
Najma, sempre foi cheia de iniciativa. Desde cedo, olhava ao redor e fazia uma "análise", como Kadar costumava dizer. Então tomava as ações necessárias para ajudar. Assim, ela estava sempre pronta para buscar alguma coisa do bebê, minha bolsa que havia ficado no quarto, ou os chinelos para seu pai que acabara de chegar em casa. Por isso, ali na praça, mesmo tendo quatro anos, estava preocupada com os dois irmãos.
A mulher que me socorrera na praça viu a movimentação em torno do posto policial. Ela olhou ao redor enquanto dois jovens me levavam para dentro do hospital. Pediu que uma amiga fosse até os policiais para informar o ocorrido comigo. Talvez as crianças tivessem sido encontradas sozinhas na praça e levadas até o posto. Por sua vez, permaneceu comigo, contou-me mais tarde. Entrou no hospital e esclareceu a cena. O menino desmaiado no banheiro químico e a mãe nervosa, do lado de fora, procurando os filhos menores, acabou perdendo os sentidos também.
Nunca poderemos agradecer o suficiente toda a ajuda que recebemos das pessoas na praça. Da família de Lasloz, que chegou minutos depois do acontecido e esclareceu tudo à polícia e funcionários do hospital. Da equipe médica, das autoridades. Todos foram solidários conosco.
Na Hungria não éramos refugiados. Éramos chamados migrantes. Não imigrantes, porque o governo não queria que ficássemos. Nenhum de nós. Migrantes para deixar bem claro que estávamos de passagem para a Áustria, França, Inglaterra, Alemanha. Apesar de toda a hostilidade que sentimos, não só naquele país, mas em todos do dito "Corredor dos Balcãs", hoje sou grata a muitas pessoas de lá. Temos entre eles amigos, cuja humanidade naqueles dias nos surpreendeu. E nos salvou.
Dentro do trem entendi finalmente e achei o único sentido possível: a viagem. Não me tornei viajante quando deixei a Síria com minha família, mas naquele primeiro bombardeio no bairro de Bustan AL-Basha .
Aquelas bombas me tiraram do meu lugar, roubaram meu trabalho, mudaram meu mundo e instalaram uma questão pelo sentido dentro de mim. A resposta tornou-se uma obsessão.
Kadar estava decidido a cuidar de nós. Levantou-se assim que o trem parou. Gentilmente reuniu os seus e disse: Chegamos. Vamos.
Sabe, fiquei com isso na cabeça. Chegamos. Vamos.
Chegamos. Então deveríamos parar, estacionar. Finalmente sossegar e apenas viver. Mas era preciso continuar, era preciso ir. Não existe essa coisa de chegada absoluta, apenas um “vamos”.
Algo profundamente importante havia acontecido conosco. Com nossa família e dentro de cada um de nós. Fomos mudados pela travessia e não podíamos ficar indiferentes.
A travessia foi uma espécie de trauma. Sim, como os médicos disseram.
Na praça, em estado elevado de estresse, não vi meus filhos. Eles estavam lá. Mas não onde deviam estar, nem onde Daniyal os deixara.
Como o irmão não saía de dentro do banheiro, Najma tomou o irmãozinho pela mão e começou a pedir ajuda. Porém, não houve ninguém que falasse árabe ali na praça. Mais tarde ela contou que pediu para cuidarem de Daniyal, que ele estava com a barriga doendo. Que eu estava dentro do hospital porque seu pai estava doente. Ninguém entendeu o que ela dizia. Então, essas pessoas que a encontraram decidiram ir até o posto policial do outro lado da praça. Dois policiais ainda atendiam a ocorrência das "crianças migrantes desacompanhadas", quando eu desmaiei próximo ao banheiro químico. Haviam chamado um intérprete para ouvir Najma e estavam ocupados com as informações que as pessoas davam. Estavam perto, mas nãos os vi.
Najma, sempre foi cheia de iniciativa. Desde cedo, olhava ao redor e fazia uma "análise", como Kadar costumava dizer. Então tomava as ações necessárias para ajudar. Assim, ela estava sempre pronta para buscar alguma coisa do bebê, minha bolsa que havia ficado no quarto, ou os chinelos para seu pai que acabara de chegar em casa. Por isso, ali na praça, mesmo tendo quatro anos, estava preocupada com os dois irmãos.
A mulher que me socorrera na praça viu a movimentação em torno do posto policial. Ela olhou ao redor enquanto dois jovens me levavam para dentro do hospital. Pediu que uma amiga fosse até os policiais para informar o ocorrido comigo. Talvez as crianças tivessem sido encontradas sozinhas na praça e levadas até o posto. Por sua vez, permaneceu comigo, contou-me mais tarde. Entrou no hospital e esclareceu a cena. O menino desmaiado no banheiro químico e a mãe nervosa, do lado de fora, procurando os filhos menores, acabou perdendo os sentidos também.
Nunca poderemos agradecer o suficiente toda a ajuda que recebemos das pessoas na praça. Da família de Lasloz, que chegou minutos depois do acontecido e esclareceu tudo à polícia e funcionários do hospital. Da equipe médica, das autoridades. Todos foram solidários conosco.
Na Hungria não éramos refugiados. Éramos chamados migrantes. Não imigrantes, porque o governo não queria que ficássemos. Nenhum de nós. Migrantes para deixar bem claro que estávamos de passagem para a Áustria, França, Inglaterra, Alemanha. Apesar de toda a hostilidade que sentimos, não só naquele país, mas em todos do dito "Corredor dos Balcãs", hoje sou grata a muitas pessoas de lá. Temos entre eles amigos, cuja humanidade naqueles dias nos surpreendeu. E nos salvou.
É possível que muitas histórias na realidade dessas travessias tenham acumulado apenas trajédias. Imagino que muitas famílias foram dilaceradas ou até totalmente dizimadas. Por isso, como é bom andarmos sob a graça do Evangelho da cruz que sempre nos inspira a crer que dias melhores virão. Para alguns tal esperança se traduz em utopia. Para a nação da cruz, entretanto, sendo em nossa realidade cruel ou na glória eterna o fim sempre gera esperança. Com todos os percalços da viajem os flashes de bênçãos (reencontro com o Kadar, cuidado com as crianças) nutrem algo necessário em nossa vida: a ESPERANÇA!
ReplyDeleteEsperando pra pegar o trem. Dentro do trem que vai levá-los ao destino final, Alemanha, a Labibah lembra os últimos acontecimentos. Kadar hospital; Danijal doente; desaparecimento dos dois menores.
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