Cap. 32 - Kadar
Era dia de teste de proficiência em alemão e muitos candidatos não eram meus alunos. Eram pessoas que iam somente realizar essa prova. Então eu estava acostumado a ver rostos desconhecidos nesses dias. Estava prestes a iniciar a prova, quando dois rapazes entraram na sala de aula. Enquanto eu falava, percebi que olhavam fixamente para mim. Um filme passou em minha mente. Sabíamos quem éramos e o que se passara entre nós.
Se não houvessem me espancado. Se não tivessem tido a maldita ideia de me roubar, eu não teria ido àquele hospital. Labibah não teria deixado as crianças do lado de fora do hospital. Não haveria banheiro químico em nosso caminho. Nem policiais nos nossos leitos de UTI. Os odiava ontem, quando não os via. Como é fácil odiar quem não vemos; de quem apenas temos uma ideia pré-moldada. Mas quando vemos, enxergamos pessoas semelhantes a nós.
Na prova foram bem. Atestei sua proficiência com o idioma alemão e os liberei. Não houve pedido de desculpas. Apenas olhares desconfiados e temerosos. Decidi deixá-los ir. Porque reter é matar a alma e liberar é vivificá-la.
Interessante que nosso encontro tenha de dado ali, em uma de minhas salas de aula. O lugar onde encontrei propósito para o que nos havia acontecido. De certa forma, Sayed e Mohamed me trouxeram até aquela sala e o lugar onde estou hoje.
No segundo dia em Frankfurt, fui até a Hauptbahnhof e pude ver a diversidade de pessoas da cidade. Na estação subterrânea de trem, no centro da cidade, a cena lembrava o episódio bíblico da Torre de Babel. As pessoas falavam muito, cada qual em sua língua. Meus ouvidos tentavam distinguir os idiomas, e às vezes até conseguia identificar o coreano, o tcheco, o russo e, claro, o árabe.
O resultado disso, no dia a dia, você pode imaginar. O idioma alemão falado em diferentes sotaques.
Aos poucos fui entendendo o que os alemães de Frankfurt pensam disso tudo. E eles não pensam igual. Alguns não se incomodam de ver estrangeiros falando sua língua. Outros demonstram certa tristeza, decepção, às vezes. Mas não houve escolha. Hoje, dois terços da população da cidade é estrangeira.
Por causa do árabe, minha família e eu não tivemos muita dificuldade de pronunciar as palavras da língua alemã. O gutturale Klange, aquele "arranhado" na garganta são a base fonética de nossa língua. Soam ainda mais arranhados do que na pronúncia dos alemães.
Falar alemão para mim foi a maneira como "mergulhei" na cidade e na cultura alemã. Foi a maneira que usei para compreender como as pessoas pensavam. E isso com um propósito muito claro. Estabelecer redes de contato entre as pessoas, e promover mais ajuda àqueles que estavam viajando da Síria para a Europa.
Como família, tínhamos alcançado nosso objetivo. Poderíamos trabalhar, residir na Alemanha e ver nossos filhos crescerem seguros ali. Mas nossa perspectiva já não era mais a mesma. Nem éramos mais os mesmos que deixaram a Síria. A travessia havia nos mudado profundamente e a última coisa que pensávamos em fazer era nos acomodar.
Embora eu estivesse tranquilo por ter vencido a árdua tarefa de manter minha família em segurança, internamente eu estava inquieto. Precisava fazer algo. Ajudar pessoas que continuavam a reviver o que vivemos nos meses de viagem até o destino final.
Em dois anos, ganhei a proficiência em alemão passei a ensinar para os recém chegados. Inicialmente minhas aulas eram em árabe, mas logo passei abri turmas em inglês também. Tudo graças a um dos apoios que o blog de Labibah recebeu. Um grupo de empresários criou outra ONG para ensinar alemão aos recém-chegados, sem custos para essas pessoas. Essa escola ampliou os idiomas nos anos seguintes. E esse modelo está espalhado por todo o mundo. Onde há refugiados, há uma escola Nova Língua para atender essas pessoas. Ajudá-las a acolher a nova língua e a nova vida.
Todos sonham com um lugar definitivo para si. Quando ainda na Síria, projetei um lugar-alvo na Alemanha. Mas creio agora que nosso lugar é o que fazemos a partir de nossas histórias. Esse lugar não é uma cidade, uma casa. É uma condição. A realização de nosso propósito é o nosso lugar.
Olhando para meus filhos, num almoço de confraternização, todos reunidos, com as famílias que construíram, um sentimento de gratidão me invade a alma.
Raramente conseguimos nos reunir todos. Cada qual está profundamente engajado em seu propósito. Nessas ausências também posso ver que demos a eles muito mais do refúgio na Europa. Fomos além.
Quando olho para Labibah, seu sorriso me informa “Continue! O caminho é esse!”.
Se não houvessem me espancado. Se não tivessem tido a maldita ideia de me roubar, eu não teria ido àquele hospital. Labibah não teria deixado as crianças do lado de fora do hospital. Não haveria banheiro químico em nosso caminho. Nem policiais nos nossos leitos de UTI. Os odiava ontem, quando não os via. Como é fácil odiar quem não vemos; de quem apenas temos uma ideia pré-moldada. Mas quando vemos, enxergamos pessoas semelhantes a nós.
Na prova foram bem. Atestei sua proficiência com o idioma alemão e os liberei. Não houve pedido de desculpas. Apenas olhares desconfiados e temerosos. Decidi deixá-los ir. Porque reter é matar a alma e liberar é vivificá-la.
Interessante que nosso encontro tenha de dado ali, em uma de minhas salas de aula. O lugar onde encontrei propósito para o que nos havia acontecido. De certa forma, Sayed e Mohamed me trouxeram até aquela sala e o lugar onde estou hoje.
No segundo dia em Frankfurt, fui até a Hauptbahnhof e pude ver a diversidade de pessoas da cidade. Na estação subterrânea de trem, no centro da cidade, a cena lembrava o episódio bíblico da Torre de Babel. As pessoas falavam muito, cada qual em sua língua. Meus ouvidos tentavam distinguir os idiomas, e às vezes até conseguia identificar o coreano, o tcheco, o russo e, claro, o árabe.
O resultado disso, no dia a dia, você pode imaginar. O idioma alemão falado em diferentes sotaques.
Aos poucos fui entendendo o que os alemães de Frankfurt pensam disso tudo. E eles não pensam igual. Alguns não se incomodam de ver estrangeiros falando sua língua. Outros demonstram certa tristeza, decepção, às vezes. Mas não houve escolha. Hoje, dois terços da população da cidade é estrangeira.
Por causa do árabe, minha família e eu não tivemos muita dificuldade de pronunciar as palavras da língua alemã. O gutturale Klange, aquele "arranhado" na garganta são a base fonética de nossa língua. Soam ainda mais arranhados do que na pronúncia dos alemães.
Falar alemão para mim foi a maneira como "mergulhei" na cidade e na cultura alemã. Foi a maneira que usei para compreender como as pessoas pensavam. E isso com um propósito muito claro. Estabelecer redes de contato entre as pessoas, e promover mais ajuda àqueles que estavam viajando da Síria para a Europa.
Como família, tínhamos alcançado nosso objetivo. Poderíamos trabalhar, residir na Alemanha e ver nossos filhos crescerem seguros ali. Mas nossa perspectiva já não era mais a mesma. Nem éramos mais os mesmos que deixaram a Síria. A travessia havia nos mudado profundamente e a última coisa que pensávamos em fazer era nos acomodar.
Embora eu estivesse tranquilo por ter vencido a árdua tarefa de manter minha família em segurança, internamente eu estava inquieto. Precisava fazer algo. Ajudar pessoas que continuavam a reviver o que vivemos nos meses de viagem até o destino final.
Em dois anos, ganhei a proficiência em alemão passei a ensinar para os recém chegados. Inicialmente minhas aulas eram em árabe, mas logo passei abri turmas em inglês também. Tudo graças a um dos apoios que o blog de Labibah recebeu. Um grupo de empresários criou outra ONG para ensinar alemão aos recém-chegados, sem custos para essas pessoas. Essa escola ampliou os idiomas nos anos seguintes. E esse modelo está espalhado por todo o mundo. Onde há refugiados, há uma escola Nova Língua para atender essas pessoas. Ajudá-las a acolher a nova língua e a nova vida.
Todos sonham com um lugar definitivo para si. Quando ainda na Síria, projetei um lugar-alvo na Alemanha. Mas creio agora que nosso lugar é o que fazemos a partir de nossas histórias. Esse lugar não é uma cidade, uma casa. É uma condição. A realização de nosso propósito é o nosso lugar.
Olhando para meus filhos, num almoço de confraternização, todos reunidos, com as famílias que construíram, um sentimento de gratidão me invade a alma.
Raramente conseguimos nos reunir todos. Cada qual está profundamente engajado em seu propósito. Nessas ausências também posso ver que demos a eles muito mais do refúgio na Europa. Fomos além.
Quando olho para Labibah, seu sorriso me informa “Continue! O caminho é esse!”.
No relato de Kadar temos algo inusitado: Os dois sd adolescentes que o atacaram e roubaram, surgem em Sala de aula as onde este é professor de alemão p/ prestar provas proficiência no idioma.
ReplyDeleteMgama-nos atenção a reação de Kadar ao fingir não reconhecê-los.