Cap. 34 - Najma
Tenho algumas lembranças de nossa viagem até a Alemanha. São como flashes, que vez ou outra me vêm à mente. Eu usava um vestidinho vermelho no dia em que saímos às pressas de Aleppo, carregada por meu pai.
Às vezes tenho lembranças de algumas coisas da Síria. Esses dias, meu pai chegou em casa com uma porção de falafel. O cheiro estava ótimo. Enquanto eu apreciava aqueles deliciosos bolinhos de grã-de-bico, lembrei de estar sentada com outras crianças, num divertido pique-nique. Comíamos falafel.
Minha memória síria também é ativada quando entro num mercado árabe. É como se já tivesse visto aquelas comidas, as estampas dos tapetes, as cortinas. E penso, como é possível lembrar dessas coisas, vinte anos depois!
Gosto muito de passear pelos mercados da cidade, mas não somente. Sinto-me em paz quando ando pela cidade, seja ela qual for, em qual lugar do mundo. A cidade é minha casa.
Caminho. Caminho. Caminho. Desfruto da brisa em meu rosto, do balanço das árvores, do céu, do pôr do sol. Acima da linha do horizonte, posso ver o céu. A sensação que posso descrever é: “sempre estive aqui”.
Não posso voltar de um passeio sem olhar para o céu. Esses dias, estava parada no parque. Com a cabeça inclinada para trás, e vi um grupo de pássaros em formação "V". O mesmo vento que eles precisavam vencer, era o que batia contra meu corpo, esvoaçando o cabelo e o casaco. Fiquei imaginando se os pássaros me viam e o que pensavam daquela mulher parada, rosto voltado para o alto, com os braços abertos, cabelos soltos sendo movimentados pelo vento, emaranhados ao cachecol amarelo.
Ninguém deveria ser privado dessa liberdade de caminhar, desfrutar do fato de existir. Porém, em todo o mundo, meninas têm sido privadas dessa e de todas as outras liberdades. São vítimas do tráfico sexual, ainda na infância ou começo da adolescência. Ultimamente não tenho mais conseguido ignorar essas histórias.
As circunstâncias que colocam as meninas nessa situação são diversas. Fugir da exploração sexual infantil não é uma opção em diversos lugares do mundo. É o caso da meninas na Nigéria. Perversamente, muitas acabam envolvidas no tráfico sexual, buscando justamente fugir dessa condição em sua terra. Iludidas por traficantes de pessoas, pensam estar pagando sua viagem para a Europa. Pensam que é temporário. Pensam que não será para sempre.
A liberdade sobre o próprio corpo não devia ser negociada. Em situação alguma. É a forma mais degradante de aprisionar alguém. Essas meninas, quando são resgatas, estão destruídas. Não se sentem mais dignas de algo bom. Nem sabem mais quem são e porque estão ali.
Fazem seis anos que viajo pelo mundo, participando do resgate de muitas dessas meninas. É tão recompensador quando conseguimos tirá-las antes da exploração sexual. Nossas ONGs oferecem escolas, casa de abrigo, oportunidades de emprego. Infelizmente, nosso trabalho nunca acaba. Não conseguimos chegar ao fim e dizer: "resgatamos a última menina". Não. Essa teia do inferno se renova todos os dias e, às vezes, temos impressão que nunca vai acabar.
Quando meus pais e Daniyal contam sobre o dia em que "desapareci" na praça, penso que coisa horrível poderia ter me acontecido. Uma criança é totalmente dependente, e por isso, vulnerável. Está ali e pode ser pega, capturada a qualquer momento. Precisamos cuidar de nossas crianças.
Eu e Josh casamos a três meses. Por enquanto não teremos filhos, pois queremos viajar mais um pouco. Continuar socorrendo aquelas que não têm ninguém que as veja como crianças simplesmente. Alguns amigos nos dizem que podemos trabalhar no escritório, promovendo os contatos, provendo ajudar financeira. Sim. Esse trabalho é tão importante quanto os outros na rede de ajuda humanitária. Acontece que queremos ver o que muitos preferem não enxergar. Queremos, por mais um tempo, ir onde as meninas estão. Olhar em seus olhos e ajudá-las a sair desses lugares infelizes.
Então decidimos. Vamos continuar viajando.
Às vezes tenho lembranças de algumas coisas da Síria. Esses dias, meu pai chegou em casa com uma porção de falafel. O cheiro estava ótimo. Enquanto eu apreciava aqueles deliciosos bolinhos de grã-de-bico, lembrei de estar sentada com outras crianças, num divertido pique-nique. Comíamos falafel.
Minha memória síria também é ativada quando entro num mercado árabe. É como se já tivesse visto aquelas comidas, as estampas dos tapetes, as cortinas. E penso, como é possível lembrar dessas coisas, vinte anos depois!
Gosto muito de passear pelos mercados da cidade, mas não somente. Sinto-me em paz quando ando pela cidade, seja ela qual for, em qual lugar do mundo. A cidade é minha casa.
Caminho. Caminho. Caminho. Desfruto da brisa em meu rosto, do balanço das árvores, do céu, do pôr do sol. Acima da linha do horizonte, posso ver o céu. A sensação que posso descrever é: “sempre estive aqui”.
Não posso voltar de um passeio sem olhar para o céu. Esses dias, estava parada no parque. Com a cabeça inclinada para trás, e vi um grupo de pássaros em formação "V". O mesmo vento que eles precisavam vencer, era o que batia contra meu corpo, esvoaçando o cabelo e o casaco. Fiquei imaginando se os pássaros me viam e o que pensavam daquela mulher parada, rosto voltado para o alto, com os braços abertos, cabelos soltos sendo movimentados pelo vento, emaranhados ao cachecol amarelo.
Ninguém deveria ser privado dessa liberdade de caminhar, desfrutar do fato de existir. Porém, em todo o mundo, meninas têm sido privadas dessa e de todas as outras liberdades. São vítimas do tráfico sexual, ainda na infância ou começo da adolescência. Ultimamente não tenho mais conseguido ignorar essas histórias.
As circunstâncias que colocam as meninas nessa situação são diversas. Fugir da exploração sexual infantil não é uma opção em diversos lugares do mundo. É o caso da meninas na Nigéria. Perversamente, muitas acabam envolvidas no tráfico sexual, buscando justamente fugir dessa condição em sua terra. Iludidas por traficantes de pessoas, pensam estar pagando sua viagem para a Europa. Pensam que é temporário. Pensam que não será para sempre.
A liberdade sobre o próprio corpo não devia ser negociada. Em situação alguma. É a forma mais degradante de aprisionar alguém. Essas meninas, quando são resgatas, estão destruídas. Não se sentem mais dignas de algo bom. Nem sabem mais quem são e porque estão ali.
Fazem seis anos que viajo pelo mundo, participando do resgate de muitas dessas meninas. É tão recompensador quando conseguimos tirá-las antes da exploração sexual. Nossas ONGs oferecem escolas, casa de abrigo, oportunidades de emprego. Infelizmente, nosso trabalho nunca acaba. Não conseguimos chegar ao fim e dizer: "resgatamos a última menina". Não. Essa teia do inferno se renova todos os dias e, às vezes, temos impressão que nunca vai acabar.
Quando meus pais e Daniyal contam sobre o dia em que "desapareci" na praça, penso que coisa horrível poderia ter me acontecido. Uma criança é totalmente dependente, e por isso, vulnerável. Está ali e pode ser pega, capturada a qualquer momento. Precisamos cuidar de nossas crianças.
Eu e Josh casamos a três meses. Por enquanto não teremos filhos, pois queremos viajar mais um pouco. Continuar socorrendo aquelas que não têm ninguém que as veja como crianças simplesmente. Alguns amigos nos dizem que podemos trabalhar no escritório, promovendo os contatos, provendo ajudar financeira. Sim. Esse trabalho é tão importante quanto os outros na rede de ajuda humanitária. Acontece que queremos ver o que muitos preferem não enxergar. Queremos, por mais um tempo, ir onde as meninas estão. Olhar em seus olhos e ajudá-las a sair desses lugares infelizes.
Então decidimos. Vamos continuar viajando.
Najma também já esta casada e, junto com o esposo, trabalha no resgate e recuperação de meninas sexualmente exploradas. Uma causa muito nobre.
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