Cap. 1 - O que ficou para trás

Uma explosão de barulho ensurdecedor. As crianças gritavam com o desespero que lhes é próprio. Daniyal sentiu uma forte pressão no peito e seus pés serem suspensos do chão. Ficou difícil respirar e, mesmo que estivesse com os olhos fechados, era como se enxergasse tudo ao seu redor.
Gritos, passos apressados, esbarrões. Seu pai gritava por sua mãe, ela respondia o tempo todo. Corriam e gritavam para se certificar de que estavam todos juntos. Yusef e Najma também estavam ali e Daniyal podia ouvir seus irmãos mais novos chorando. A respiração de Kadar, seu pai, se tornou tão rápida, que Daniyal pensou que ele iria sofrer um ataque do coração. O rosto daquele homem adulto estava vermelho e o menino podia ver as artérias pulsando nas têmporas do pai. Mas os clarões, e logo depois a fumaça, fizeram com que aquele menino esperto escondesse o rosto no ombro de Kadar.
Corriam e gritavam... àquelas alturas Daniyal não via mais nada, decidira ficar imóvel para facilitar que seu pai o carregasse. Com o rosto colado em sua camisa, apenas sentia a respiração do pai e o vento sobre sua cabeça.
Outra explosão rompeu muito perto deles. Agora um silêncio ensurdecedor tomou conta de seus corpos. Os adultos não mais gritavam; apenas corriam.
Seus irmãos voltaram a chorar. Isso era bom, de certa forma. Daniyal não tinha a menor ideia de quanto tempo aquilo tudo estava durando. Por um instante seu pai o soltou no chão, mas não o largou. Mantinha-o perto de seu peito, enquanto recuperava o fôlego, ajoelhado atrás de um prédio. Era a escola de Daniyal. Ele podia reconhecer. Olhou para o lado e viu sua mãe com o bebê Yusef no colo. Najma estava agarrada em suas costas. Como ela não caíra durante a corrida? Seu pai passou a mão na cabeça da irmã. Graças a Deus! Todos aqui! Vamos pelo mercado. “Soco?” Mas foi lá que as bombas caíram! Por isso mesmo! Lá não será bombardeado novamente.
Seu pai o pegou novamente no colo e, com o outro braço, juntou Najma do chão, deixando que sua mãe ficasse apenas com o bebê para carregar. Avançaram rapidamente virando à esquina.
Meu pai não foi o único a ter a ideia de atravessar o mercado. Havia muitas pessoas lá. Chorando e gritando. Vi uma menina sentada, abraçando um menino de uns dois anos de idade; seus olhos estavam muito abertos, como se quisesse ver algo além do que estava enxergando.
Também vi um homem ajudando outro, com sangue escorrendo pela cabeça; caminhavam sobre uma montanha de pedras. Todas as pessoas por quem passávamos estavam empoeiradas pela poeira branca dos edifícios destruídos.
Ainda era possível identificar os umbrais das entradas das lojas; ainda formavam aquela bonita carreira de arcos; porém, não havia mais os tapetes e os tecidos; apenas pedras, madeira, ferro e telhas, tudo aos pedaços. Seguimos o contingente maior de pessoas que avançava pelo meio do que antes fora o mercado tradicional. Quando chegamos ao fim da “rua”, meu pai parou; estava ofegante. Minha mãe parou ao seu lado. Como ela era forte, nem parecia assustada. Sorriram por um instante.
Um caminhão parou à nossa frente. Meu pai reconheceu as pessoas e rapidamente ajudou minha mãe com Yusef. Depois colocou Najma na carroceria do caminhão e somente então me pegou no colo e subiu também. Embora eu estivesse muito assustado, não cerrei mais os olhos.
A cidade fumegante foi ficando para trás. A casa ficou para trás. A escola, a igreja, a casa dos avós paternos. Tudo ficou para trás. Ao amanhecer do dia, chegamos ao vilarejo de meus avós maternos.

Comments

  1. A narrativa do primeiro capítulo é bem real. Até dá pra visualizar a cena. É uma realidade que só vemos pelas telas da TV. É dentro da nossa rotina paramos alguns minutos para observar, e logo em seguida no meio de muitos afazeres caem no esquecimento. Se nós nos preocupamos verdadeiramente e sentimos verdadeiramente. O que é viver desta forma? NEM NOS NOSSOS SONHOS CONSEGUIMOS CHEGAR PERTO. Nossa zona de conforto, não nos permite.

    ReplyDelete
  2. Sim! Olhar na perspectiva do outro é sempre desafiador!

    ReplyDelete
  3. Oi Cris! Em primeiro lugar devo dizer que amei o formato do convite, com cada frase iniciando com a palavra ou expressão final da frase anterior. Frases curtas, num ritmo cadenciado.
    Muito bom este primeiro capítulo, descrição bem detalhista do que está acontecendo( o local , o bombardeio, as sensações). Aguardo ansiosamente os próximos. Parabéns.

    ReplyDelete
    Replies
    1. Obrigada, Sandra! Estou feliz por compartilhar esse mundo de ideias que tenho dentro da minha cabeça hehehe. Espero que goste dos próximos capítulos!

      Delete
  4. Gostei muito do primeiro capítulo, Cris! A narrativa é muito envolvente! E fiquei faceira que hoje já tem o segundo disponibilizado :D

    ReplyDelete
    Replies
    1. Obrigada! Que bom que gostou! Nesse final de semana saem mais capítulos!

      Delete
  5. Tenho muitos amigos que apostam em uma gerra civil, para que haja uma grande mudança no país. Mas eles realmente não sabem o que é uma guerra.
    No mundo militar se usa uma frase que diz assim: A guerra é o último recurso de um governo irresponsável.
    Muito realista o primeiro capítulo. Ótimo...vamos adiante.

    ReplyDelete
    Replies
    1. Verdade, Luciano! Uma guerra é uma irresponsabilidade, sempre! Mas o caminho da paz é desafiador demais para o orgulho de muitos governantes. Assim, continua a história e as guerras se repetem.

      Delete
  6. Oi amada pastora Cris! Belo e detalhado capítulo... Muito interessante. Quero saber mais..

    ReplyDelete
    Replies
    1. Oi!!! Que bom que gostou! Nesse final de semana saem mais capítulos! Obrigada por acompanhar a leitura!

      Delete
  7. Psa Cris a história é envolvente, como já comentaram antes, os detalhes nos envolvem. O titulo " o que ficou para trás" inicia a idéia e completa a mensagem, pois era tudo o que tinham...e o que ficou? E como será? Parabéns, seguirei lendo.

    ReplyDelete

Post a Comment

Popular posts from this blog

Mais que um livro

Cap. 18 - O ponto de vista da fronteira