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Showing posts from June, 2020

Cap. 20 - O ar fresco da praia

Quando chegamos em Szeged logo percebemos a grande confusão que se formara. A estação rodoviária estava lotada de pessoas refugiadas. Os policiais esforçavam-se para "escoar" a massa de pessoas para fora da estação. Assim, fomos saindo. Lasloz, nosso novo amigo, decidiu ficar conosco. Minha mãe ligava para meu pai, mas o celular dele estava sem sinal. Assim, entramos num pequeno restaurante e aguardamos. Depois de um tempo, o Sr. Lasloz foi até um posto policial. Voltou com a notícia de que a horda de refugiados já havia chegado à cidade. Era difícil localizar todas as pessoas, pois houve um grande espalhamento dos refugiados pela cidade. Por estratégia de logística da prefeitura local, muitos ônibus foram disponibilizados para levar grupos para cidades vizinhas. Os policiais lhe deram ainda a informação de que a situação na cidade era tensa. Muitos morados simplesmente não aceitavam a circulação dos sírios, de maioria muçulmana, pelas praças e comércio local. Por causa dis...

Cap. 21 - Onde está Kadar Mohamed Mastub?

Entrei na fila para servir a mim e a Najma, num prato só, assim ficava mais fácil. Minha mãe foi servida com Yusef em seu colo. Logo estávamos comendo purê de batatas, molho de carne, legumes cozidos e pão. Delicioso. Depois do almoço ficamos sentados, enquanto minha mãe conversava com outras pessoas, perguntando a respeito de meu pai. O abrigo de Sezged era bom. Em nosso quarto havia dois beliches. Minha mãe ajeitou Najma numa cama embaixo e eu em cima. Ela dormiu com Yusef na outra cama baixa. Acordávamos com uma música suave ao fundo. Repetíamos o ritual de ida ao banheiro. Só que antes eu sempre ia com meu pai. Agora eu ia sozinho, minha mãe levava Najma e Yusef; depois ela voltava e deixava os dois comigo no quarto, para só então cuidar de sua higiene. Meu pai não chegava. Minha mãe perguntava sobre ele às pessoas, na esperança de que alguém naquele abrigo tivesse feito a mesma caminhada. Até encontrou algumas dessas pessoas, mas ninguém que tivesse visto ou falado diretam...

Cap. 22 - Era só uma criança...

No dia 23 de setembro, Sr. Lasloz foi até o abrigo e conversou Labibah. Convenceu-a a ir para sua casa em Budapeste. Assim ele e sua família poderiam ajudar a cuidar das crianças. Também poderiam lidar diretamente com as autoridades responsáveis pelo gerenciamento da crise de refugiados. Na viagem, Lasloz começou a ouvir as histórias dessas pessoas as quais estava ajudando. "Sinto-me culpado, em parte, pela situação em que você e as crianças se encontram. A ideia de parar o ônibus partiu de mim.", confessou o homem que lembrava o pai de Labibah. Ela imediatamente corrigiu-o: "Nunca devemos por culpar por fazer a coisa certa." Lasloz agradeceu com um sorriso. Labibah olhava para a paisagem do lado de fora do carro. Os campos de trigo estavam verdes ainda. "Kadar era um homem perturbado pela culpa quando o conheci, ainda na universidade. Depois que nos casamos, antes de nascerem as crianças, lembro que acordava de pesadelos no meio da madrugada. Então ele chor...

Cap. 23 - Povo da Cruz

Na casa de Lasloz, em Budapeste, Labibah e as crianças foram recebidos como parte da família. Há muito tempo que ela e Kadar não sentiam esse calor humano. Sua história era de separação com as famílias. Ambas, a dela e a de Kadar, romperam laços com eles depois que se converteram ao cristianismo. Quando Yusef nasceu, os pais de Labibah foram visitá-los. E voltaram outras vezes. Mas os pais e irmãos de Kadar não quiseram mais vê-lo, por considerarem ingratidão depois de tudo o que fizeram para lhe proteger quando era criança. A família de Lasloz ouvia atentamente as histórias que Labibah contava. Assim aprendiam sobre o pensamento das pessoas no Oriente Médio. As explicações de Labibah os cativavam. Sentiam que haviam sido indiferentes com a realidade dos refugiados sírios até aquele momento. Compreenderam, entre outras coisas, que a mudança de religião no mundo muçulmano é algo muito complexo. Em geral, as famílias recebem isso como uma traição por parte do familiar. Assim, ele n...

Cap. 24 - Enfim, notícias!

Depois de uma semana recebemos notícias de meu pai, mas não como gostaríamos. Estava em um dos hospitais de Budapeste. Havia sido encontrado desacordado e sem documentos. O telefonema foi dado diretamente à minha mãe, numa tarde em que estávamos só nós em casa. Logo que desligou o telefone, minha mãe ligou para a esposa do Sr. Lasloz e ela pediu que esperássemos. Eles haviam ido uma cidade próxima, atrás de informações sobre meu pai. Um policial avisara que ele tinha sido reconhecido por uma família de refugiados e o Sr. Lasloz queria conversar com eles pessoalmente. Decidiram voltar no mesmo momento em que minha mãe contara que meu pai fora encontrado. "Espere, Labibah. Já entramos no carro. Em uma hora estaremos aí". Mas minha mãe não conseguiu esperar. O hospital em que meu pai estava era tão perto, que fomos andando. Em dez minutos chegamos lá. Só que houve um impasse. Crianças não podiam entrar na ala onde meu pai estava. Minha mãe entrou para vê-lo e eu fiquei sentado ...

Cap. 25 - Sem voz

Kadar sempre foi forte. Alto, bonito. Eu me agradei dele desde que o conheci. Não podia entender como tinha sido dominado por aqueles dois adolescentes. Mas o fato era esse. Ele me contou tudo. Primeiro o derrubaram e depois bateram muito. Quando acordou estava num mato, sem sua carteira e mochila. Caminhou até uma estrada próxima e desmaiou novamente. Lembra-se de ter acordado num hospital e depois ter sido colocado numa ambulância. Havia perdido a fala e passara dias semiconsciente. Até que acordara definitivamente. Porém, enxergava, gesticulava, mas não conseguia falar. Depois disso, lembra-se de acordar nesse hospital e de chamar meu nome. Só então, doze dias depois do ocorrido, conseguiu dizer seu nome completo à polícia. Logo registraram no banco de dados de refugiados. Por isso, fui chamada para vê-lo. Não tinha nem previsão de alta. Estava muito machucado. Hematomas enormes. Felizmente, sua cabeça havia desinchado, relataram os médicos. Queriam os nomes dos adolescentes. Pron...

Cap. 26 - As primeiras bombas

Onde estão Yusef e Najma? Foi a pergunta que fiz no hospital, assim que acordei. Encontraram meus filhos? Daniyal está bem? Cuidaram dele? “Se acalme, senhora”, disse a mulher vestida de branco à minha frente. Ela começou a falar sobre meus filhos, mas as palavras não faziam sentido. Ela falava em inglês, e eu não estava conseguindo entender. Depois de um tempo apareceu uma jovem que falava árabe e parou-se ao meu lado. Ele explicou que Daniyal estava dormindo ao meu lado. Eu não havia visto! Virei e quis levantar-me pra ir até sua cama, mas logo vi que não podia. Meu corpo estava adormecido e não respondia bem ao que meu cérebro mandava. Najma? Yusef? Então veio a resposta que eu não queria ouvir. “Ainda não foram encontrados, senhora. Mas a polícia está procurando. Fique tranquila; irão encontrá-los”. O desespero me arrancou da cama onde estava deitada e devo ter feito algo muito ameaçador, porque fui controlada por várias pessoas. Meus braços se debatiam, e eu gritava com todas ...

Cap. 27 - Qual o sentido?

A cena que vi ao abrir a porta de nosso apartamento foi absurda. Nossa porta ficava numa das pontas do corredor. A porta da família de Said e Latifa ficava na outra. No corredor havia três portas, as quais levavam a três famílias. Na primeira porta, logo à esquerda de nosso lar, moravam Abgail e Rashid, com seu pequeno bebê, Yusef como o meu. A porta seguinte pertencia à família de Talmid, o casal, os pais dele e os três filhos adolescentes. Na terceira porta ainda estavam Mohamed e sua esposa Jasmine que trabalhava comigo no hospital. Eles não tinham filhos e por isso, sempre que podiam, vinham à nossa casa passar um tempo conosco e as crianças. Jasmine amava meus filhos e vivia agradando-os com seus biscoitos de gengibre e seu tabule delicioso, carregado em hortelã. Como o tabule daquele dia, que ela trouxera à minha casa no começo da tarde e que na hora da explosão espalhava o aroma em nossa mesa.  A cena diante de mim era totalmente desprovida de sentido. A porta entreaberta mo...

Mais que um livro

Convido você para uma aventura. Uma aventura que vai além de uma história. Uma história emocionante. Emocionante como é a vida de uma pessoa. A vida de uma pessoa nunca é apenas uma entre tantas. Entre tantas, a vida de uma pessoa é única. Única como sua digital, sua letra, sua arcada dentária, sua íris, seu DNA. DNA é a identidade da qual não podemos fugir. Fugir em dadas situações é uma opção. Opção forçada, muitas vezes, quando não se tem mais escolha. Escolha é uma grande palavra. Palavra forte e ousada. Ousada como é a alma daquele que ousa ir além. Além-mar, além de onde estou, além de mim mesmo. Além de mim mesmo para encontrar com o outro. O outro e sua escolha. Escolha essa que pode custar muito para mim. Para mim que ousei ir além. Voltaria atrás? Aquém?  Essa história surgiu durante a onda de refugiados sírios que chegou à Europa desde 2015. Inclusive, quando eu e Silvano estivemos na Alemanha, presenciamos o começo dessa grande crise humanitária. Ent...

Cap. 28 - Policiais ao pé da cama

Deitada na cama hospitalar, os giros se tornaram incessantes. Meu labirinto respondia aos estímulos descontrolados da pressão arterial elevada. A falta de sentido – isso não estava no meu prontuário, mas era a causa do “stress pós-traumático prolongado” atestado pelo médico responsável. Acho que consideraram o fato de eu ter saído da síria sob bombardeio, e a travessia no mar, e a peregrinação comum aos refugiados, para então determinar o período como “prolongado”. Mas devia estar escrito lá: falta de sentido. Deixei o que era e o que tinha por causa dos meus filhos, e agora não sabia onde estavam, nem como  Daniyal estava se sentindo, nem sabia se Kadar teria sequelas dos machucados na cabeça. Falta de sentido. O último paciente, da última noite no hospital em Aleppo, chegou em choque. Pálido. Seu coração parou sem que achássemos o motivo de sua disritmia. Diminui o ritmo e parou. Não houve outro acontecimento senão o choque. Conclusão: sua psiquê enviou uma mensagem ao cérebro...

Cap. 29 - Travessia

A bateria do celular estava em 5%. Eu poderia carregá-la, mas achei que a tomada estava longe para ir até lá. Teria que usar um daqueles carregadores que os voluntários deixaram na estação. Desisti e peguei no sono. Acordei com a voz no alto falante: “Mulheres com crianças – Prioridade no embarque”. Dentro do trem entendi finalmente e achei o único sentido possível: a viagem. Não me tornei viajante quando deixei a Síria com minha família, mas naquele primeiro bombardeio no bairro de Bustan AL-Basha . Aquelas bombas me tiraram do meu lugar, roubaram meu trabalho, mudaram meu mundo e instalaram uma questão pelo sentido dentro de mim. A resposta tornou-se uma obsessão. Kadar estava decidido a cuidar de nós. Levantou-se assim que o trem parou. Gentilmente reuniu os seus e disse: Chegamos. Vamos. Sabe, fiquei com isso na cabeça. Chegamos. Vamos. Chegamos. Então deveríamos parar, estacionar. Finalmente sossegar e apenas viver. Mas era preciso continuar, era preciso ir. Não existe essa c...

Cap. 30 - Cruzando a porta

A porta do vagão abriu-se e uma luz cegou minha visão infantil. O brilho ofuscante era um convite. Como quiséramos chegar. Como choramos esperando estar ali. Como sofremos porque estávamos exaustos e ainda tão distantes. Milhares de quilômetros de distância. Agora estávamos ali diante da porta do vagão do trem. Finalmente chegamos! A voz de meu pai interrompeu: Vamos! Ao cruzarmos a porta do vagão, vimos milhares de pessoas à nossa frente! Um grupo em especial segurava cartazes com nossos nomes e fotos. "Herzlich willkommen", li num cartaz. Embora eu ainda não conhece o idioma alemão, eu sabia o que significava. Estava estampado nos rostos das pessoas ao redor. Sorrisos. Algumas lágrimas. Eu e meus irmãos ganhamos alguns presentes ali mesmo, na plataforma da estação. Ursos de pelúcia e doces. Meus pais choravam de alegria e repetiam "vielen Dank".   Não sei como, mas os novos amigos de nossa família providenciaram tudo para nós. Entregaram a chave de nossa nova ...

Cap. 31 - Labibah

Sinto-me feliz por estar com minha família nessa cidade. Depois de tudo o que enfrentamos, encontramos um novo propósito. E ele surgiu logo nos primeiros dias em Frankfurt. Caminhando pela cidade, andando de trem ou olhando pela janela, vimos que nossa situação era apenas uma gota em um grande oceano. Nossos olhos foram se abrindo para a grande mistura de pessoas. Ainda impressiona-me, mesmo depois de tantos anos, a multiplicidade de culturas estampada nos rostos dos que caminham pela cidade. Asiáticos e árabes certamente se destacam. Entretanto, as nacionalidades são da casa das centenas. Aqui é comum não ter passaporte vermelho. Aliás, ser cidadão de Frankfurt é ser um cidadão estrangeiro. As pessoas são muitas e elas não param. Estão sempre andando. Arrastando malas de rodinhas, ou carregando mochilas nas costas. Estão sempre indo a algum lugar. Sempre carregando coisas. As pessoas aqui nunca param. Também não param de chegar. Cada uma delas tem uma história única. Verdadeira ep...

Cap. 32 - Kadar

Era dia de teste de proficiência em alemão e muitos candidatos não eram meus alunos. Eram pessoas que iam somente realizar essa prova. Então eu estava acostumado a ver rostos desconhecidos nesses dias. Estava prestes a iniciar a prova, quando dois rapazes entraram na sala de aula. Enquanto eu falava,  percebi que olhavam fixamente para mim. Um filme passou em minha mente. Sabíamos quem éramos e o que se passara entre nós. Se não houvessem me espancado. Se não tivessem tido a maldita ideia de me roubar, eu não teria ido àquele hospital. Labibah não teria deixado as crianças do lado de fora do hospital. Não haveria banheiro químico em nosso caminho. Nem policiais nos nossos leitos de UTI. Os odiava ontem, quando não os via. Como é fácil odiar quem não vemos; de quem apenas temos uma ideia pré-moldada. Mas quando vemos, enxergamos pessoas semelhantes a nós. Na prova foram bem. Atestei sua proficiência com o idioma alemão e os liberei. Não houve pedido de desculpas. Apenas olhares de...

Cap. 33 - Daniyal

Fui eu quem deu a ideia para minha mãe escrever um blog. Então ela começou a contar detalhadamente episódios do que nos havia acontecido. Muitas situações ela me perguntava como tinha sido, para se certificar que sua memória estava clara a respeito. Também queria saber o que foi que eu pensei naquele momento. Se tive medo. Se entendi o que aconteceu. Sentado ao seu lado, em frente ao computador, nossas conversas pareciam não ter fim e nos aproximaram muito nas primeiras semanas em Frankfurt. Com o tempo comecei a escrever também. Meu ponto de vista de nossa história. Tudo o que passamos não foi a história mais triste. Outras famílias perderam suas vidas na travessia do mar. Outras adoeceram e morreram em algum ponto da travessia. Outras famílias apenas uma parte conseguiu chegar ao destino. Muitas ficaram presas numa burocracia sem fim em acampamentos precários, desumanos. Qualquer uma dessas coisas poderia ter acontecido conosco. Cresci recontando nossa história. Não para atrair a ...

Cap. 34 - Najma

Tenho algumas lembranças de nossa viagem até a Alemanha. São como flashes , que vez ou outra me vêm à mente. Eu usava um vestidinho vermelho no dia em que saímos às pressas de Aleppo, carregada por meu pai. Às vezes tenho lembranças de algumas coisas da Síria. Esses dias, meu pai chegou em casa com uma porção de falafel. O cheiro estava ótimo. Enquanto eu apreciava aqueles deliciosos bolinhos de grã-de-bico, lembrei de estar sentada com outras crianças, num divertido pique-nique. Comíamos falafel. Minha memória síria também é ativada quando entro num mercado árabe. É como se já tivesse visto aquelas comidas, as estampas dos tapetes, as cortinas. E penso, como é possível lembrar dessas coisas, vinte anos depois! Gosto muito de passear pelos mercados da cidade, mas não somente. Sinto-me em paz quando ando pela cidade, seja ela qual for, em qual lugar do mundo. A cidade é minha casa. Caminho. Caminho. Caminho. Desfruto da brisa em meu rosto, do balanço das árvores, do céu, do pôr do s...

Cap. 35 - Yusef

É claro que não tenho lembranças de nossa saída da Síria e toda viagem até a Alemanha. Talvez por isso, sempre senti como se fosse natural de Frankfurt. Minhas memórias de infância são daqui. Aprecio cada canto dessa cidade... não sei se tem algum onde nunca tenha pisado. Sei que tenho uma vida toda pela frente, como dizem os mais velhos. Terminar a faculdade, talvez fazer outra. Fazer escolhas com toda a liberdade e ir avançando rumo ao futuro. Cresci fazendo parte de uma história de refugiados. Felizmente, nosso deslocamento acabou quando chegamos aqui. Nunca me senti impróprio para esse lugar. Pelo contrário, acho que sou o sírio mais alemão que essa cidade já conheceu. O interessante é que tenho amigos em toda parte do mundo. Fruto do trabalho humanitário que meus pais acabaram desenvolvendo. Por isso, posso ver que há algumas coisas que são comuns entre os jovens. Por exemplo, muitos estão deslocados. E não é uma questão de ser refugiado, geograficamente falando. Muitos são nat...