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Cap. 1 - O que ficou para trás

Uma explosão de barulho ensurdecedor. As crianças gritavam com o desespero que lhes é próprio. Daniyal sentiu uma forte pressão no peito e seus pés serem suspensos do chão. Ficou difícil respirar e, mesmo que estivesse com os olhos fechados, era como se enxergasse tudo ao seu redor. Gritos, passos apressados, esbarrões. Seu pai gritava por sua mãe, ela respondia o tempo todo. Corriam e gritavam para se certificar de que estavam todos juntos. Yusef e Najma também estavam ali e Daniyal podia ouvir seus irmãos mais novos chorando. A respiração de Kadar, seu pai, se tornou tão rápida, que Daniyal pensou que ele iria sofrer um ataque do coração. O rosto daquele homem adulto estava vermelho e o menino podia ver as artérias pulsando nas têmporas do pai. Mas os clarões, e logo depois a fumaça, fizeram com que aquele menino esperto escondesse o rosto no ombro de Kadar. Corriam e gritavam... àquelas alturas Daniyal não via mais nada, decidira ficar imóvel para facilitar que seu pai o carregass...

Cap. 2 - Adeus

Vamos! Vamos! Gritavam os homens em cima da carroceria do caminhão. Meu pai repetiu o que se tornaria um ritual nos próximos meses: fez subir minha mãe com Yusef no colo, depois Najma, depois eu e então ele, de um único salto. Diferente do que na fuga, haviam se preparado para a viagem. Pães e água, alguns doces, cobertores, algumas roupas para cada um, fraldas. Meu pai se certificou de que estávamos seguros dentro do caminhão, e sentou-se também. Tive impressão de que ele estava chorando. Minha mãe com certeza estava. A despedida dos avós não havia sido fácil. Os adultos lamentavam ter que ir embora, levar-nos tão pequenos para longe, para não se sabe onde, e todos os perigos que podiam acontecer, e os filhos de amigos que não deram mais notícias, e as crianças são tão frágeis, e as pessoas do outro lado não estão aceitando os estrangeiros, e vários outros "es". Mas meus avós viram como chegamos à sua casa, depois do bombardeio em Allepo. Estávamos empoeirados dos pés à ...

Cap. 3 - Eu fui visto!

Como o campo de refugiados já estava lotado, tivemos que entrar numa fila enorme. Levou dias para entrarmos na Turquia, pois não tínhamos passaporte e precisávamos novos documentos. Na fila recebíamos garrafas de água e, duas vezes por dia, vinham caminhões trazer comida. O frio fez queimar nossos lábios. Tínhamos que mudar de lado para nos defender do frio (logo percebemos que era melhor ficar de costas para o vento). As pessoas dos caminhões também entregavam roupas e mais cobertores. Mesmo assim, tudo ao nosso redor era muito gelado. Acabamos ficando doentes, mas pelo menos não sentíamos fome. E as noites passávamos numa das barracas do acampamento “do lado de cá”. Não lembro bem desses dias, apenas que eu meus irmãos menores estávamos ora no colo, ora no chão, hora entre as pernas de nossos pais. Pra mim, os dias que passamos na fila de espera para entrar na Turquia foram até divertidos. Desde que partimos de Aleppo eu não tinha mais brincado. Acho que por estar num acampam...

Cap. 4 - Para Esmirna

Daniyal ficou sentado ao lado de sua mãe enquanto ela amamentava Yusef. Najma continuava encolhida sob os cobertores, mas estava acordada. Kadar trouxe as passagens de ônibus e avisou que precisavam ir. Ele pegou Najma no colo e as duas mochilas; entregou um cobertor para Daniyal e esperou Labibah levantar-se com o bebê. Acomodaram-se da melhor maneira que puderam. Labibah com Yusef e Najma em dois bancos, Kadar e Daniyal, ao lado. Eram crianças tranquilas. Fizeram algumas perguntas infantis aos pais. Qual o nome da cidade para onde estavam indo. Esmirna. Vamos morar lá? Quis saber, Najma. Não. Ainda vamos viajar mais. De ônibus? Não. De navio. Tem cama no navio? Não. Mas tem bancos. Vamos ajeitar uma caminha pra você. Lembram do passeio de barco? Os olhos das crianças brilharam. Lembravam bem desse dia. Chegaram cedo ao parque e logo compraram os ingressos para o passeio de barco. Ainda na fila, todos vestiram coletes flutuantes. As crianças riam de tudo. E quando entraram no barco,...

Cap. 5 - Para o porto

Pela manhã, Kadar pagou o dono do hotel pelo quarto e saiu com a família. Procurava um determinado Café , de acordo com um cartão que havia recebido do dono do hotel. Passaram por um centro comercial, cujas lojas ofereciam coletes salva-vidas, lanternas e mochilas à prova d’água. Não demorou muito e chegaram ao local indicado. Um homem sentado numa das mesas logo percebeu o cartão na mão de Kadar. Fez com que sentassem e mandou servirem café para a família. Os acertos da viagem foram feitos rapidamente. O homem deu informações sobre o local, o horário e como as crianças deviam estar bem agasalhadas. Todos da família deviam estar com coletes salva-vidas, providenciados por Kadar. O pagamento seria feito só na Grécia, em mãos, para o condutor do navio. Passaram o dia pelo centro da cidade. Assim, como muitas outras pessoas. Mochilas amontoadas, jovens estendidos no gramado da praça central. A torre do relógio ficaria pra sempre na lembrança do pequeno Daniyal. Desde que aprendera a ler,...

Cap. 6 - Para a Grécia I

A bordo, nossa família se acomodou num pequeno banco de madeira, próximo da proa, sob uma cobertura de acrílico verde. Sentaram-se os pais, nós os filhos no colo. Vestíamos coletes salva-vidas, como a maioria das pessoas que aos poucos foram se amontoando em outros bancos e por fim no chão. O embarque foi rápido e a partida do porto também, já que a viagem era clandestina. Meu pai pagaria muito dinheiro por aquela viagem.  Mais tarde meu pai nos disse que, se pudesse, venderia nossa casa em Aleppo para pagar os sogros. Meu pai estava visivelmente chateado, pois o barco no qual entramos não era exatamente um navio. Era menor. Pelo menos não se tratava de um bote de borracha. Entretanto, era como se meu pai tivesse sido enganado pelo homem que fez a negociação de nossa viagem. Essa pequena mentira deixou meus pais desconfiados, e já não estavam mais tranquilos como durante o dia, no centro de Esmirna. Eles haviam dado o dinheiro para a travessia. Aconcheguei-me ao lado de ...

Capítulo 7 - Para a Grécia II

Não houve acordo, e fomos levados para barcos menores, que estavam amarrados ao grande barco. Cada barco ia com dois “pilotos”. Meu pai, como nos caminhões, fez entrar minha mãe com Yusef, depois Najma, depois eu e então ele veio para dentro do barco, que foi descido ao mar escuro do Egeu. Os dois marujos não permitiam que ligássemos lanternas, então ficamos ali, o mais imóveis possível, até o dia começar a clarear. Ligaram o pequeno motor do barco. Ele não dava conta do peso de tantas pessoas, mas pelo menos nos tirava da deriva. O embalo ali era bem mais perceptível. Íamos ao alto e embaixo, repetidamente. Eu sentia medo e meus irmãos choravam. Era um choro constante, assustado. Quando já se podia ver os sinais do sol, já não tão tímido, avistamos terra firme. Os homens passaram minha família e outras pessoas para um bote inflável. Eles tinham pressa, então meu pai passou para o bote,  enquanto ajudava minha mãe comigo e Najma. Dê-me a menina, Labibah! Mas ela estava decidida ...

Cap. 8 - Esperança

O pai pagou ao piloto do bote. Armado, o piloto-marujo-soldado desapareceu na orla. Não preocupou-se com o bote que ficou jogado a beira-mar e mais tarde foi retirado pela polícia local.  O casal sírio não sabia se sentia amargura ou gratidão pela travessia no mar. Difícil de decidir, naquele momento. Provavelmente seria gratidão, pois viram a morte na força das ondas. Nas armas dos atravessadores também. Não esperavam por tamanha intimidação. Realmente acreditavam que sua viagem seria mais segura do que aquelas vistas nas notícias. Já não era questão de lamentar ou reclamar. Estava feito. Atravessaram. Embora estivessem em terra, ela não era firme. Um sentimento de insegurança brotou assim que subiram uma elevação de areia, coberta de vegetação beira-mar. Avistaram a praia dos turistas ao longe, ainda vazia. As pessoas chegariam só mais tarde, para deitarem nas cadeiras de praia, alheias a tudo o que se passara no começo do dia. À frente outro tipo de pessoas indicavam a direção...

Cap. 9 - Today! Today!

Quando acordei já era noite. Minha mãe estava sentada ao nosso lado e meus irmãos dormiam. Daniyal, vou ali no banheiro, fique aqui. Logo ela voltou; só agora ela tinha trocado suas roupas molhadas. Então ela permitiu que eu fosse ao banheiro também. Estava muito frio. Mãos entregaram sopa quentinha para nós. Tinha um gosto estranho. Não tinha canela, como a sopa que minha mãe fazia em casa. Mas comemos. Até Yuesef. Então, ficamos ali parados, olhando para os prédios, as pessoas, as luzes das luminárias da praça. Por muito tempo. Uma jovem aproximou-se de nós e ofereceu-se para nos levar até um alojamento. Por causa das crianças, the children,  ela disse. Mas minha mãe não aceitou. Ela preferiu esperar por meu pai. Ele poderia ficar desesperado se não nos encontrasse quanto chegasse de volta à praça. E nós estávamos tranquilos. Então, a garota saiu e, depois de um tempo, voltou, com casacos e mais dois cobertores para nós. A noite estava clara e com todas as luzes acesas, não ha...

Cap. 10 - It's Good

Policiais vieram nos ajudar a levantar e abriram uma parte da cerca para que voltássemos à fila, atrás de um grupo de jovens. Aos poucos foram chegando caminhões e muitas pessoas. Elas começaram a montar tendas brancas ao lado da fila. Logo passaram outras, trazendo garrafas de água e sanduíches. Depois outros caminhões, distribuindo camas dobráveis que foram colocadas dentro das tendas. Essas pessoas nem precisaram insistir para que fôssemos para dentro de uma das grandes barracas. Meu pai ficou na fila e nós fomos com minha mãe. Havia muitas camas ali, mais de mil, ouvi uma pessoa dizer. Aos poucos foram sendo ocupadas por corpos e mentes exaustas. Tão logo me acomodei com Najma na nossa cama, dormi. Só me lembro de ter acordado com o sol brilhando, clareando o teto branco da barraca. Eu e minha irmã ficamos ali, sentados em nossa cama, atentos a tudo o que acontecia. Logo vieram outras pessoas, trazendo comida novamente para nós. Ofereceram mochilas novas, com pasta de dente, es...

Cap. 11 - Prontos pra partir!

Meu pai chegou à barraca dias depois, cansado. A barba por fazer e a cor roxa ao redor de seus olhos mostravam que os documentos que trazia em mãos tinham lhe custado exaustão física. Ele queria voltar ao centro de registro conosco; minha mãe tentou convencê-lo a ficar e dormir aquela noite na barraca. Não teve jeito, a fuga em meio a bombas, dias na fronteira com a Turquia, aquela travessia sombria pelo mar, tudo o empurrava de volta para o centro de registro. Com seus documentos em mãos, pudemos nos registrar também. Nossos dedos, um por um, foram copiados para o computador. Fotos de nossos rostos. As informações dadas por meu pai confirmadas com minha mãe. O caminho de volta para a barraca parecia um caminho de volta para casa. Meus pais felizes, sorrindo, caminhando sem pressa. Parecia passeio de domingo. Nós os cinco, como no dia que fomos visitar a Cidadela de Aleppo. Subimos as escadarias, eu e Najma, fazendo uma competição. Ela conseguia subir de dois em dois degraus, estican...

Cap. 12 - Na parede da estação

Tem coisas que é difícil para uma criança explicar. Mas isso não significa que ela não consiga entender. Assim me senti quando saímos do trem porque havíamos chegado noutro país. Era escuro, e estávamos cansados. Havia pessoas acampadas por toda a estação da cidade Idomeni também. Mais uma vez, arrumamos um canto para nós. Eu via as pessoas. Elas eram como nós. Mas eram muito diferentes ao mesmo tempo. Ninguém parecia feliz. Mas era Europa, não era? Tínhamos documentos de refugiados agora. Mesmo assim, a viagem não tinha terminado ainda. Eu sabia disso. Eu entendia que as coisas não estavam tão boas. Como eu sabia? Tinha muitas pessoas na mesma situação que nós; elas já estavam lá quando chegamos. E elas não estavam felizes. Então, não devíamos ficar felizes também. Além disso, havia os policiais, muitos, sempre ao nosso redor. Dava medo. Eles pareciam preocupados, não com a nossa situação, mas porque éramos muitos. E éramos estrangeiros. Acho que nos achavam estranhos e perigosos. A...

Cap. 13 - Empurrados para fora

Mesmo quando eu tinha uma janela, gostava de observar os cachorros e os passarinhos. Ficava acompanhando eles com os olhos, para ver se descobria se estavam no caminho de volta pra suas “casas” ou se estavam em alguma viagem por alimento. Eu gostava disso. De ver as cortinas das outras casas, de imaginar como era lá dentro. Se seus tapetes eram tão bonitos como os nossos. Se sua comida era tão saborosa. Imaginava as cadeiras, as almofadas. Imaginava e imaginava. Acho que nunca olhei para alguém com raiva. Mesmo assim, eu sempre soube que nem todas as pessoas são boas. Era uma criança, não um móvel, por isso eu sabia. Minha mãe e suas recomendações. A saída da escola. Os soldados de um lado, os soldados contra esses, e aqueles outros que não dava pra saber de que lado estavam. Nos últimos tempos em Aleppo eles foram aumentando, eram vistos por todos os lados. Lançavam bombas. Quem lança uma bomba numa escola? Gente ruim. Por isso eu sabia que nem todas as pessoas são boas. Eles acabara...

Cap. 14 - No contêiner

A família passou a noite à beira da estrada, junto com um grupo de pessoas. Algumas famílias e jovens que viajavam sozinhos. Todos sírios. O menino Daniyal não poderia lembrar dessa espera que se estendeu até ao amanhecer do dia seguinte. O motivo é que Labibah  deu uma dose dobrada de remédio pra enjoo às crianças. Ela não havia feito isso até aquele dia, pois não concordava com essa prática. Embora tivesse percebido nos acampamentos que vários pais o fizessem. Assim, nem no frio da Síria, nem na travessia do mar, nem mesmo na exaustão na Grécia dera remédio para seus filhos dormirem. Mas aquela noite sucumbiu e medicou as crianças. Agasalhou-as e mais uma vez dormiu um sono intermitente. Impossível entregar-se totalmente ao sono. Vigiou seus filhos por toda a madrugada. Pediu a Deus que os guardasse da viagem que fariam. O perigo era grande. Estavam cientes, mas era preciso prosseguir a viagem. Ao amanhecer, de um dia que prometia ser de sol forte novamente, acordaram com o baru...

Cap. 15 - Compaixão, mesmo a contragosto

Caminharam muito, até cansar. A sede não puderam saciar por completo, pois a água era pouca. As crianças, parecendo compreender a situação, não reclamavam. Comeram uma maçã cada uma e isso lhes bastou. No mais, as menores, que iam carregadas por Kadar e Labibah, resignaram-se a soltar o corpo no colo dos adultos, para facilitar que fossem carregadas. Enquanto foi possível, não ligaram lanternas. Assim, não chamaram atenção quando deixaram o grupo de refugiados ao lado do caminhão. Kadar acredita que não deram por sua falta, ou escolheram não denunciar aos policiais que devem ter ido checar a "ocorrência". Ninguém os seguiu mata adentro. Embora fosse um pouco assustador andar no meio de árvores, à noite, o grupo sentia-se seguro. Os adultos estavam decididos e não pareciam estar com medo. Kadar, anos mais tarde, contou a alguns amigos que estava aliviado. Era bom estar ali, sem a tensão de pessoas ao redor. Sem policiais, atravessadores e suas propostas, outros refugiados de...

Cap. 16 - Ajuda?

Na cidade de Naissus, Markus acabara de assumir seu turno, quando atendeu um telefonema.  Era um morador da zona rural, próxima a cidade, chamado Aleksandar. Ligou para  denunciar um grupo de estrangeiros indo para a cidade. Identificou-os como muçulmanos, dois adultos, três crianças e dois jovens. As leis estavam mudando, endurecendo no país. Desde que a Hungria construíra o muro na fronteira, as autoridades Sérvias ficaram com um grande contingente de refugiados dentro do país. Essas pessoas andavam pelas cidades, algumas com algum dinheiro, outras sem nenhum. Em Naissus os refugiados não eram bem vindos, por causa do turismo. A cidade natal de Constantino, o Grande, não estava preparada para receber os estrangeiros. Então, Markus decidiu sair para averiguar a denúncia. Se os encontrasse, levaria para autoridades superiores. A viatura escolhida foi  um camburão, para poder carregar todo o grupo. Na estrada, a família do pequeno Daniyal nem desconfiava da denúncia. Já e...

Cap. 17 - Rumo a Subótica

Por que está nos ajudando? Kadar queria saber. O sérvio passou a falar um pouco sobre si mesmo. "Sou professor de história. Para mim, uma guerra, qualquer uma, nunca é do povo. Povo não faz uma guerra. Povo sofre a guerra." Continuou contando histórias de sua família, bisavós, avós, todos que haviam sofrido com alguma guerra. Virando-se para Kadar, afirmou. Você também é professor, posso ver". Não houve resposta e Alex aceitou. Compreendia a insegurança do homem sírio a quem estava ajudando. Ajuda é coisa incomum. Repetidas vezes, o motorista olhou pelo retrovisor. Para a estrada? Não. Alguém os segue? Também não. Ele observava atentamente os dois adolescentes no banco de trás. Chegaram a Presevo no final da tarde. Alex deixou-os bem próximos a uma grande aglomeração de refugiados. Com grande alívio, o grupo se infiltrou na multidão e foi até o centro de registro. Com grande frustração, reiniciavam sua tentativa de atravessar a Sérvia. Passaram a noite numa pequena ...

Cap. 18 - O ponto de vista da fronteira

Naquele momento eu acabara de chegar ao trabalho. Nossos turnos ainda estavam estendidos porque a polícia especial da Hungria não tinha sido enviada para reforçar a fronteira. Os chamados "Caçadores das Fronteiras" chegaram cerca de um mês depois. Aquela semana seria uma das mais difíceis. De longe vi o grande grupo de refugiados se aproximando. A ordem era não deixá-los passar. Então eles foram chegando e se acomodando na frente da barreira de contenção. Aquelas grades e o arame farpado enrolado era o único obstáculo entre nós e a multidão que avistávamos. Nunca imaginei uma cena daquelas. Tratavam-se de pessoas como nós. Famílias inteiras com seus idosos e crianças. Foram chegando, chegando. Logo uma multidão estava concentrada à nossa frente e a barreira de contenção na verdade não servia pra muita coisa. Só que eles eram educados, não derrubaram a barreira. Apenas gritavam palavras de socorro em inglês. Também faziam um pedido: “Open”. Queriam chegar à estação de trem e...

Cap. 19 - Assim era meu pai

Passamos de ônibus ao lado da multidão que caminhava às margens do asfalto. Vi muitas crianças que, assim como eu e meus irmãos, iam um pouco carregados pelos pais, um pouco a pé. Escapamos de fazer aquela caminhada. Minha mãe percebeu que eu fiquei muito preocupado quando vi todas aquelas pessoas caminhando debaixo do sol quente. Então ela explicou no meu ouvido que nós já tínhamos caminhado antes, depois que saímos do caminhão. Agora era a vez deles. Fingi que a resposta era suficiente. Mas minha mãe sempre foi muito esperta. "Você não é bobo, né? Você é muito inteligente, meu filho". Então ela me disse que os documentos que conseguimos em Presevo nos permitiram comprar as passagens de ônibus legalmente na cidade de Subótica, bem como o Sr. Alex havia dito.  Um homem, levantou-se e falou alto para que todos pudessem ouvi-lo. Falou em sua língua, então não entendemos bem o que dizia. Mas logo compreendemos que se tratava de uma oferta de carona à algumas mulheres e crianças...

Cap. 20 - O ar fresco da praia

Quando chegamos em Szeged logo percebemos a grande confusão que se formara. A estação rodoviária estava lotada de pessoas refugiadas. Os policiais esforçavam-se para "escoar" a massa de pessoas para fora da estação. Assim, fomos saindo. Lasloz, nosso novo amigo, decidiu ficar conosco. Minha mãe ligava para meu pai, mas o celular dele estava sem sinal. Assim, entramos num pequeno restaurante e aguardamos. Depois de um tempo, o Sr. Lasloz foi até um posto policial. Voltou com a notícia de que a horda de refugiados já havia chegado à cidade. Era difícil localizar todas as pessoas, pois houve um grande espalhamento dos refugiados pela cidade. Por estratégia de logística da prefeitura local, muitos ônibus foram disponibilizados para levar grupos para cidades vizinhas. Os policiais lhe deram ainda a informação de que a situação na cidade era tensa. Muitos morados simplesmente não aceitavam a circulação dos sírios, de maioria muçulmana, pelas praças e comércio local. Por causa dis...

Cap. 21 - Onde está Kadar Mohamed Mastub?

Entrei na fila para servir a mim e a Najma, num prato só, assim ficava mais fácil. Minha mãe foi servida com Yusef em seu colo. Logo estávamos comendo purê de batatas, molho de carne, legumes cozidos e pão. Delicioso. Depois do almoço ficamos sentados, enquanto minha mãe conversava com outras pessoas, perguntando a respeito de meu pai. O abrigo de Sezged era bom. Em nosso quarto havia dois beliches. Minha mãe ajeitou Najma numa cama embaixo e eu em cima. Ela dormiu com Yusef na outra cama baixa. Acordávamos com uma música suave ao fundo. Repetíamos o ritual de ida ao banheiro. Só que antes eu sempre ia com meu pai. Agora eu ia sozinho, minha mãe levava Najma e Yusef; depois ela voltava e deixava os dois comigo no quarto, para só então cuidar de sua higiene. Meu pai não chegava. Minha mãe perguntava sobre ele às pessoas, na esperança de que alguém naquele abrigo tivesse feito a mesma caminhada. Até encontrou algumas dessas pessoas, mas ninguém que tivesse visto ou falado diretam...

Cap. 22 - Era só uma criança...

No dia 23 de setembro, Sr. Lasloz foi até o abrigo e conversou Labibah. Convenceu-a a ir para sua casa em Budapeste. Assim ele e sua família poderiam ajudar a cuidar das crianças. Também poderiam lidar diretamente com as autoridades responsáveis pelo gerenciamento da crise de refugiados. Na viagem, Lasloz começou a ouvir as histórias dessas pessoas as quais estava ajudando. "Sinto-me culpado, em parte, pela situação em que você e as crianças se encontram. A ideia de parar o ônibus partiu de mim.", confessou o homem que lembrava o pai de Labibah. Ela imediatamente corrigiu-o: "Nunca devemos por culpar por fazer a coisa certa." Lasloz agradeceu com um sorriso. Labibah olhava para a paisagem do lado de fora do carro. Os campos de trigo estavam verdes ainda. "Kadar era um homem perturbado pela culpa quando o conheci, ainda na universidade. Depois que nos casamos, antes de nascerem as crianças, lembro que acordava de pesadelos no meio da madrugada. Então ele chor...

Cap. 23 - Povo da Cruz

Na casa de Lasloz, em Budapeste, Labibah e as crianças foram recebidos como parte da família. Há muito tempo que ela e Kadar não sentiam esse calor humano. Sua história era de separação com as famílias. Ambas, a dela e a de Kadar, romperam laços com eles depois que se converteram ao cristianismo. Quando Yusef nasceu, os pais de Labibah foram visitá-los. E voltaram outras vezes. Mas os pais e irmãos de Kadar não quiseram mais vê-lo, por considerarem ingratidão depois de tudo o que fizeram para lhe proteger quando era criança. A família de Lasloz ouvia atentamente as histórias que Labibah contava. Assim aprendiam sobre o pensamento das pessoas no Oriente Médio. As explicações de Labibah os cativavam. Sentiam que haviam sido indiferentes com a realidade dos refugiados sírios até aquele momento. Compreenderam, entre outras coisas, que a mudança de religião no mundo muçulmano é algo muito complexo. Em geral, as famílias recebem isso como uma traição por parte do familiar. Assim, ele n...

Cap. 24 - Enfim, notícias!

Depois de uma semana recebemos notícias de meu pai, mas não como gostaríamos. Estava em um dos hospitais de Budapeste. Havia sido encontrado desacordado e sem documentos. O telefonema foi dado diretamente à minha mãe, numa tarde em que estávamos só nós em casa. Logo que desligou o telefone, minha mãe ligou para a esposa do Sr. Lasloz e ela pediu que esperássemos. Eles haviam ido uma cidade próxima, atrás de informações sobre meu pai. Um policial avisara que ele tinha sido reconhecido por uma família de refugiados e o Sr. Lasloz queria conversar com eles pessoalmente. Decidiram voltar no mesmo momento em que minha mãe contara que meu pai fora encontrado. "Espere, Labibah. Já entramos no carro. Em uma hora estaremos aí". Mas minha mãe não conseguiu esperar. O hospital em que meu pai estava era tão perto, que fomos andando. Em dez minutos chegamos lá. Só que houve um impasse. Crianças não podiam entrar na ala onde meu pai estava. Minha mãe entrou para vê-lo e eu fiquei sentado ...

Cap. 25 - Sem voz

Kadar sempre foi forte. Alto, bonito. Eu me agradei dele desde que o conheci. Não podia entender como tinha sido dominado por aqueles dois adolescentes. Mas o fato era esse. Ele me contou tudo. Primeiro o derrubaram e depois bateram muito. Quando acordou estava num mato, sem sua carteira e mochila. Caminhou até uma estrada próxima e desmaiou novamente. Lembra-se de ter acordado num hospital e depois ter sido colocado numa ambulância. Havia perdido a fala e passara dias semiconsciente. Até que acordara definitivamente. Porém, enxergava, gesticulava, mas não conseguia falar. Depois disso, lembra-se de acordar nesse hospital e de chamar meu nome. Só então, doze dias depois do ocorrido, conseguiu dizer seu nome completo à polícia. Logo registraram no banco de dados de refugiados. Por isso, fui chamada para vê-lo. Não tinha nem previsão de alta. Estava muito machucado. Hematomas enormes. Felizmente, sua cabeça havia desinchado, relataram os médicos. Queriam os nomes dos adolescentes. Pron...